SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Os palácios que apodreceram diante do Atlântico faiscante da baía de Todos-os-Santos não têm nada de carne. Mato alto, raízes e galhos agora infestam cada fenda entre pedras, telhas e azulejos desses prédios que não resistiram aos assaltos do tempo e deixaram a enseada mais vistosa de Salvador com o semblante de uma boca banguela.


No Solar do Unhão, a poucas quadras dali, as ruínas de Adriana Varejão são construções teatrais de compostos de plástico. Na superfície dessas esculturas da artista, a trama de ângulos retos dos azulejos esconde entranhas em convulsão, amontoados de carne fake que às vezes vazam pelas laterais num jorro de vísceras tão violento quanto caricato, como se arrancados de um tosco filme de zumbi.


Ou do faroeste que foi o Brasil colonial, como ela vem plasmando em sua obra ao longo das últimas décadas. Varejão resgata os excessos do barroco, a porcelana portuguesa azul e branca e seus motivos de anjinhos emoldurados pelos floreios e ventos do rococó, para escancarar a violência na construção de uma nação. 


Os painéis azulejados recriados em suas telas reinventam a narrativa clássica do colonizador catequizando o índio para mostrar narrativas ao reverso, cheias de sangue, em que Jesus pode ser abatido pelos nativos e corpos surgem mutilados –cortes na superfície do quadro dão uma aura avermelhada a pernas, braços e outros membros decepados.


Ela revela nesses gestos cirúrgicos grosseiros aquilo que se agitou por baixo das nossas vanguardas geométricas, esforços visuais que não passaram de pele fina e frágil de nosso projeto de uma Bauhaus tropical. Foi um movimento que fracassou na tentativa de disfarçar os espasmos e soluços profundos de um país condenado tanto ao passado quanto ao futuro –o presente travado, sequestrado a meio caminho.


“É uma tentativa de dar corpo à história”, diz a artista. “Quando entrei pela primeira vez numa igreja barroca, tive uma epifania. Era essa plasticidade, a presença do corpo, a loucura da matéria. Meu trabalho tem esse exagero, tem muita tinta. São instâncias paralelas, de um lado a plasticidade e do outro esse corpo.”


Nesse sentido, a superfície violada de seus quadros, a revelar nervos e vísceras escondidas, serve de membrana entre esses dois universos, o da carne e o da operação plástica mais cerebral. São telas, esculturas e instalações encharcadas de drama, retratando o que parece ser sempre o auge de um momento de tensão. 


Suas obras agora enfileiradas no Museu de Arte Moderna da Bahia, rodeando a monumental escadaria de madeira que Lina Bo Bardi construiu ali há cinco décadas, já foram quase todas vistas à exaustão.


Mas o que torna singular essa montagem é como esses trabalhos ecoam tudo que está ao redor do museu, da passarela azulejada que leva à sala principal aos painéis agonizantes que cobrem tantas fachadas e paredes da capital baiana, em especial os da igreja de São Francisco, uma alegoria exuberante de vícios e virtudes no coração de um Pelourinho que lembra uma cracolândia com toques barrocos.


Varejão, desde sempre, e Lina, desde que se deparou com as contradições da Bahia, fez de sua obra uma tentativa de reescrever a história e a estética a partir do ponto de vista dos vencidos, não dos vencedores, das almas penadas que vagam pelas metrópoles da atualidade, com ancestrais no nosso passado escravocrata, gente marcada pela violência desmedida, às vezes erotizada em narrativas visuais.


O pastiche do barroco de Varejão, suas telas navalhadas e suturadas, de fendas que lembram vaginas como síntese de ruínas fecundas, ganham potência ímpar no Solar de Lina.


Quando a arquiteta italiana reformou o velho engenhou à beira mar em Salvador, trouxe a técnica de encaixe dos carros de boi para construir sua versão de uma escadaria cerimonial. 


Essa estrutura veio depois da escada em caracol de Affonso Eduardo Reidy no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e da mais audaciosa estrutura nessa linhagem, a escada sem guarda-corpo do Itamaraty de Niemeyer.


No lugar do concreto maciço, uma plataforma performática, Lina usou a madeira bruta. É o popular domado pela vanguarda geometrizante, numa revisão escandalosa do jogo moderno, a joia bruta mais bela que a polida.


O choque é nítido. Enquanto Varejão busca o hiperbólico espetáculo barroco, Lina persegue a ideia do rústico popular, a ideia de verdade dos materiais âncora do modernismo aplicada a uma realidade agreste, menos resplandecente, ortogonal, depurada.


São estratégias conflitantes que levam ao mesmo efeito –uma revisão da narrativa canônica da modernidade torta construída no Brasil.


Nas palavras de Luisa Duarte, que organiza a mostra, é nesse ponto que as ruínas alegóricas de Varejão estabelecem um “solo fértil para improváveis novas construções”. Sua destruição encenada aponta o frescor de novas luzes a dispersar a névoa que afoga a história colonial.


Obras como “Pele Tatuada à Moda de Azulejaria” e “Carne à la Taunay”, realizadas na década de 1990, transformam as paisagens idílicas do novo mundo plasmado pelo pintor da missão francesa e o que parece ser o lombo de um homem tatuado com padrões dos azulejos portugueses num banquete visual, bifes no balcão do açougue ou servidos em pratos de porcelana.


“Essa carne da pintura vai ficando mais e mais intensa”, diz Duarte. “É uma retórica canibal, uma contracatequese que aproxima a antropofagia da visualidade cristã.”


Varejão, no caso, torna mais violenta a narrativa religiosa. Os painéis do convento de São Francisco em Salvador, referência central de uma série de suas obras, falam do medo da morte, mas retratam o fim da vida não com corpos agonizantes, mas com figuras esqueléticas, ossos desbastados que já não assombram a visão com uma ideia de dor –o sofrimento ali passou, virou só lição de moral.


No convento, alguém apagou o rosto da figura da morte, num acesso de raiva ou de medo. Em suas obras, a artista reencena tudo, devolvendo o corpo à dor. “É um processo de descolonização da história”, diz Varejão. “Essa é a violência da nossa história.”