Grandes pintores fizeram autorretratos. Rembrandt executou quase cinquenta obras dessas, e elas constituem um capítulo à parte na História da Arte, pois o artista se retratou em diferentes idades, eternizando um estudo da sua vida e das mudanças que o tempo causava em seu físico e espírito. Outros, como Caravaggio, retrataram-se como parte de obras; na pintura Davi com a cabeça de Golias, o pintor se representou na cabeça cortada de Golias; no monumental As meninas, Diego Velásquez chega à perfeição: um jogo de espelhos em que pinta a si mesmo pintando a família do rei Filipe IV.

Mas pessoas com bom poder aquisitivo também desejavam perpetuar-se para a posteridade, sendo necessário um excelente (e caro!) pintor para o registro em tela.

Hoje a facilidade de produção e difusão da autoimagem se torna um dos mais importantes produtos da cultura contemporânea; por isso, na prova de 2014, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) abordou questão referente ao novo hábito disseminado entre todas as idades, mas principalmente dos jovens: o autorretrato. No exame, um pequeno robô estaria enviando para a Terra aquilo que viria a ser a primeira foto do planeta Marte, uma selfie, ao desembarcar. Evidentemente, a alternativa correta continha leve crítica ao procedimento – provas são elaboradas por pessoas mais velhas…

Onipresente em qualquer ambiente, o hábito de fotografar a si mesmo constitui uma das grandes características de nossa época, e em escolas, onde crianças e adolescentes estão em grupo, uma verdadeira epidemia. Psicólogos já tem se dedicado ao tema em suas pesquisas, desde que, com as alterações tecnológicas havidas nos últimos anos, máquinas fotográficas transformaram-se em equipamentos minúsculos, estão acopladas ao telefone, miniaturizadas e muito leves, representando um salto tecnológico para a geração de imagens. A atividade, antes restrita a profissionais, hoje atrai cada vez mais os amadores, e todos podem fazer imagens sem restrição ou gasto, o que realiza um velho sonho, antes restrito a realeza ou burguesia, de perpetuar a própria imagem.

Dentro da mitologia grega, existe uma figura bastante relembrada, Narciso, um jovem de rara beleza, que provocava temores na própria mãe, uma ninfa, que assustada com a beleza extrema de seu filho, questionou um adivinho sobre seu futuro, ouvindo dele que o rapaz poderia ter vida longa, desde que jamais contemplasse sua própria figura.

Narciso cresceu indiferente àqueles que o amavam, e um dia viu sua imagem em uma fonte, enamorando-se perdidamente por aquilo que via, e nunca mais conseguiu afastar-se dali, morrendo de fome e vaidade.

Este mito foi analisado por Sigmund Freud, que o considerava uma redução do prazer ao próprio Eu, uma punção egoísta, que provoca desinteresse do mundo exterior, uma condição psicológica e ao mesmo tempo cultural, que atinge todo ser vivo, mas pode desviar-se ao patológico, à mania de grandeza. Todo narcisista estaria mais preocupado com a forma como é visto pelos demais, do que com seus próprios verdadeiros sentimentos, ou seja, projetar uma boa imagem de si mesmo é mais significativo que estar realmente bem.

Assim, nas mídias digitais estamos sempre lindos, sempre bem, sempre felizes. Curtidas e comentários positivos são desejados como forma de reconhecimento social, e para isso expomos aquilo que pesquisadores já denominam êxtimidade, ou seja, recortes teatralizados da intimidade, na sociedade do espetáculo é preciso que me vejam, para que eu possa ser.

Aparentemente estamos criando realidades que se aproximam da ficção, sendo personagens heroicos e maravilhosos de nossa vida comum e insípida.

O grande problema parece residir no fato de que, de certa forma, isso nos desobriga de cultivarmos valores reais, bastando os idealizados.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.