RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O sol estava a pino quando um menino de cerca de 8 anos soltou da mão do pai e correu para olhar dentro da enorme fonte, no centro da praça. Apoiou as mãos na beirada de pedra e colocou a cabeça para dentro, perguntando por que estava vazia.

Vinte e cinco anos antes, o chafariz que jorrava água no centro da fonte era o parque de diversões de outras 70 crianças que viviam naquela região, no entorno da Igreja da Candelária, no centro do Rio. A maioria delas não está mais aqui para contar essa história.

Esse foi o local de uma das chacinas mais impactantes da história do país, que deixou oito crianças e jovens moradores de rua mortos em 23 de julho de 1993. Em frente à Candelária, hoje, sobraram as pinturas de corpos vermelhos na calçada de pedras portuguesas desgastadas pelo tempo e uma cruz que não tem mais os nomes das vítimas.

Se a frente da Candelária mudou, a falta de assistência a crianças na cidade não é tão diferente daquela época.

“Esses dias eu contei, só entre Flamengo e Botafogo [bairros vizinhos da zona sul], mais ou menos 150 crianças nas ruas entre 10 e 16 anos de idade”, diz Yvonne Bezerra de Mello, 71, que dava aulas aos meninos de rua e foi a primeira a ver os corpos naquele dia.

Ela montou o instituto Uerê e dá aulas no complexo de favelas da Maré, zona norte do Rio, justamente para evitar que as crianças cheguem a esse ponto. “Tem toda uma rede de proteção que não funciona. Não funcionava 25 anos atrás, não funciona agora”, afirma.

Alguns dos principais indicadores da falência do poder público em proteger as crianças são a taxa de jovens fora da escola -que era de 12% no estado do RJ em 2015, ou seja, 130 mil adolescentes de 15 a 17 anos- e o alto número de menores apreendidos: 8.480 em 2017, quase um por hora.

A Prefeitura do Rio não informou o número de crianças e adolescentes em situação de rua atualmente, alegando que faz um novo levantamento com metodologia diferente.

O último censo apontava que a população total havia quase triplicado: de 5.580 em 2013 para 14 mil no final de 2016, sem distinção de idade.

Dados do IBGE também mostram que 31% das crianças na cidade do Rio eram vulneráveis à pobreza em 2010.

Adilson Dias, que viveu na Candelária um ano antes da chacina, aos 11 anos, acha que hoje há menos crianças nas ruas, mas não por um bom motivo. “Muitas são pegas pelo tráfico, porque quando é menor de idade não vai preso.”

Hoje, aos 38 anos, virou diretor de teatro e artista, graças a pessoas que lhe deram oportunidades pelo caminho.

“A arte me salvou. Em lugar onde não tem lazer e cultura, a violência e a droga viram o entretenimento”, afirma.

A educação também foi a saída para Claudete Costa, 38 , catadora de reciclável há 28. Foi um curso sobre liderança jovem que a fez sair das ruas.

“Na noite da chacina eu fui salva pelo lixo”, conta. Então com 12 anos, ela dormia na rua com a mãe e costumava brincar com os meninos da Candelária no chafariz e debaixo da marquise, onde seis deles foram assassinados por policiais militares de folga.

“Mas naquele dia minha mãe me botou para catar papel, e tinham dois carrinhos, era muito lixo.” Hoje Claudete estuda e chefia uma cooperativa de reciclagem para que seus dois filhos não passem pelos mesmos sofrimentos.

Cristina Leonardo, que fazia um trabalho voluntário de prevenção de doenças com jovens da Candelária, critica o fato de sobreviventes não terem sido acolhidos. “Era uma grande oportunidade de concentrar as crianças e dar um jeito, mas não fizeram nada.”

Após a chacina, os meninos foram levados a um abrigo improvisado por alguns dias. Depois, alguns foram para a chamada Casa da Testemunha (fechada em 1997), mas a maioria foi para três barracos de um conhecido da professora Yvonne. Até ela montar uma escola debaixo de um viaduto no centro, sem paredes, por quatro anos.

Cristina, que trabalha há mais de 20 anos com projetos sociais e agora presta consultoria, avalia que avançaram as leis de proteção à criança, mas as ferramentas não funcionam. “Antes era menino de rua, agora as crianças estão nas comunidades.”

Renata Neder, coordenadora de pesquisa da Anistia Internacional (ONG que ajudou a proteger o único baleado sobrevivente da chacina), ressalta que as vítimas de homicídio no país são cada vez mais jovens. “E tem a questão: quantas escolas ficam sem aula por causa de operações policiais violentas que resultam em horas de tiroteio?”, pergunta.

Foram precisamente 381 unidades no Rio no ano letivo de 2017 -25% da rede municipal- que fecharam ao menos um dia devido a confrontos, afetando 129 mil crianças.