Na UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo, um homem luta contra um tumor grave no fígado. Ao seu redor, família, amigos e amigas se revezam, rezam e esperam. Pedem um milagre. A vida de Dom Luciano Mendes de Almeida é preciosa demais para não comover toda a Igreja do Brasil e mesmo pessoas de fora da Igreja.



Conheci Dom Luciano antes de ser bispo, em um retiro que pregou no Cenáculo do Rio de Janeiro. Impressionou-me profundamente pela unção com que paulatinamente descortinava diante de todos o convite amoroso de Deus a um encontro mais profundo com Ele. Impressionou-me o que falava e como falava: como alguém que tem muita, profunda intimidade com Aquele de quem fala.


Ao mesmo tempo, impressionou-me pela clareza e a irretocável didática com que apresentava a matéria para a oração: com desenhos feitos no quadro com maestria, um encadeamento perfeito do pensamento, uma exposição transparente e perfeitamente compreensível a qualquer ouvido, letrado ou simples.



Após ser consagrado bispo, crismou meu marido. Creio que foi a primeira crisma que realizou. Daí em diante, todas as vezes em que me encontrava dizia da sua alegria e do seu privilégio por ter dado a Ekke o sacramento da confirmação.


Conheci-o depois mais de perto como bispo, liderando ousados projetos pastorais em São Paulo como bispo auxiliar e coordenando com mansa humildade e inegável competência a CNBB, primeiramente como secretário geral e depois presidente. Em nenhum momento se percebia que os altos cargos que ocupava na hierarquia eclesiástica o afetassem minimamente que fosse. Seguia seu caminho com o eterno sorriso nos lábios, trabalhando e ajudando a todos, incessantemente, comendo pouco e dormindo às vezes nada.


Talvez a ocasião que mais me moveu sua pessoa foi um debate no IUPERJ, com muitos intelectuais presentes. Presidente da CNBB na ocasião, ele devia falar sobre a Igreja na conjuntura daquele momento brasileiro. Chegou uma hora e meia atrasado. Encontrou a sala cheia e explicou com simplicidade e candura que não havia podido chegar antes por ter que acompanhar uma procissão em Santo Antonio do Bacalhau, “senão o povo ficava muito triste”.


E começou a falar. Falou do sofrimento do justo, da vida após a morte e da experiência de Deus, declarando serem estes, a seu ver, os grandes pontos que deveriam identificar a Igreja no mundo de hoje. Na sala, respirava-se um silêncio denso e grávido. Podia se ouvir uma mosca voar. Ao terminar, os debatedores negaram-se a fazer-lhe perguntas. Um deles se disse desejoso de beijar sua mão. Saiu de novo correndo com seu único terno e sua malinha, para tomar outro avião.


Lembro-me da notícia do acidente que quase o matou. O Brasil inteiro era uma corrente só de oração, suplicando a Deus não ser privado de seu querido pastor. Do ponto de vista dos médicos era impossível sua recuperação que, no entanto, aconteceu depois de longo tempo e deixando dolorosas seqüelas em seu frágil corpo, que continuou trabalhando e servindo incansavelmente. As missas em ação de graças se multiplicaram para agradecer o dom de sua vida devolvida a nós.


Agora, diante do hospital, missas são celebradas e a oração cheia de fé do povo continua. Como filhos que levantam os olhos ao Pai, pedimos o que mais desejamos: que haja um novo milagre. Ao mesmo tempo, preparamos nosso coração para a eventualidade de que o estado de Dom Luciano se agrave e ele passe a acompanhar-nos desde “outro” lugar, na glória e na visão plena do Deus que tanto amou e serviu durante sua vida.


Maria Clara Lucchetti Bingemer , teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.