A humanidade passa periodicamente por crises moralizantes. Não se trata de crises morais, ou de busca pela recuperação de virtudes indispensáveis, é a procura por vezes violenta da imposição de valores de determinado grupo a toda uma sociedade. Em diversos níveis de barbárie conta-se neste elenco com as caças às bruxas e hereges na idade média, as perseguições a judeus na Rússia czarista, o holocausto nazista, o Macarthismo e a Ku Klux Klan nos EUA, os diversos governos ditatoriais da América Latina, os suprematistas raciais, enfim, a lista é imensa quase interminável, e tétrica. Vivemos agora uma dessas crises que seria apenas ridícula não fora perigosa, o que se chamou a princípio politicamente correto e atualmente assume uma legião de nomes e representações, mas com um ponto comum: a certeza de seus praticantes de que têm a seu lado a verdade e que podem, mais que isso devem, torna-la obrigatória para todos. A fé, em si mesmo, em uma religião, em uma ideologia, é positiva até o ponto em que seu portador tem a certeza de que o mundo todo deve crer no mesmo que ele, momento em que se torna uma patologia que pode levar a calamidades.

A era dos direitos civis ameaça se tornar a era dos ofendidos, a saudável e necessária defesa de princípios tende a criar mártires de fundo de quintal, tudo que é humano parece ter se tornado estranho. O debate de ideias sequer começa, parte-se para a agressão, para os gritos, para as palavras de ordem; e muitos dos participantes não sabem muito bem o que estão defendendo ou atacando, têm apenas a confortadora companhia de uma multidão que grita o mesmo que eles, e a certeza de que defendem a família, a moral, os bons costumes, ignorando até o que são mesmo esses valores, e por que, e contra o que, são defensáveis. Nas escolas pretende-se alterar o passado, criando um em que todos éramos irmãos, solidários, inclusivos e perfeitos, aceitávamos todas as mulheres no sistema educativo, todos os povos como iguais. Para promover a existência deste passado ideal, queremos censurar toda literatura que mostre o contrário – ou seja, a realidade – mesmo que esta tenha exatamente nos auxiliado na reflexão que permitiu a mudança. É como se, renegando nosso passado, criando uma ficção edulcorada, excluíssemos da raça humana toda a maldade, toda incompreensão.

Professores são constrangidos a não abordar determinados autores, que escreveram em outras épocas, com a afirmação de que seus escritos veem determinadas minorias com preconceitos, esquecendo que estes preconceitos foram superados poucos anos atrás, e que estes registros exatamente demarcam nosso percurso em direção a uma maior aceitação de nossa humanidade comum. No entanto, apesar da veracidade de que povos que ignoram sua história estão fadados a repeti-la, não se deseja magoar ninguém, citar períodos racistas de nossa trajetória parece colaboração com esta prática abjeta. Não é, mas conhecer o que já fizemos, e suas terríveis consequências, pode nos auxiliar a não reproduzir barbaridades como estas, ou compreender mais profundamente procedimentos que levaram a guerras ou genocídios.

Os recentes protestos contra exibições de arte em espaços públicos do país contaram com o apoio de pessoas que não se interessam por arte, nunca entraram ou pretendem entrar em um museu, e sabem apenas que combatem a imoralidade e defendem as crianças e jovens. Qualquer criança ou jovem pode acessar facilmente imagens realmente imorais, isto é, se não forem crianças e jovens que estão sendo explorados em prostíbulos ou rodovias, que estão destruindo suas vidas em cracolândias. Acima de tudo, nós estamos inertes ao fato de que muitas estão fora do sistema educacional, portanto sem chances de alterar suas vidas presentes. Estamos sendo eficientes em nossas tentativas de não ofender estas crianças?

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino do Brasil – UniBrasil.