Evidentemente temos imensa dificuldade no Brasil para distinguir interesses públicos daqueles privados, e isso parece constituir uma herança de nosso período colonial. A forma como fomos colonizados, com administradores alocados em Portugal para dirigirem o país de forma a obter o máximo lucro e um mínimo de incomodo; a dificuldade de fiscalização e a legislação da metrópole estabelecendo os elementos constitutivos brasileiros, e também as relações do direito privado, provocaram na esfera pública um poder ilimitado dos governantes, que eram, ao mesmo tempo, os grandes proprietários.

Em todas as esferas, ordens administrativas e benefícios pessoais foram dissimuladas em leis, avisos, decretos, regulando a vida entre a metrópole e a colônia, com o arbítrio e a forte tendência de fortalecer a iniciativa privada consolidando o regime monárquico, mesmo na república velha. O modelo patrimonialista, misturando o público e o privado, o exercício do nepotismo, da corrupção, e extremo clientelismo estiveram presentes não apenas na proclamação da república em 1889, mas em todo o exercício administrativo, contaminando toda a estrutura estatal até os dias de hoje.

Embora desde Getúlio Vargas tenhamos cultivado um certo ideal de racionalismo e impessoalidade, o Estado continuava ineficiente, arrastado, e, fora as exceções de praxe, fornecendo empregos por indicações e não exatamente por competência. Os paradigmas da modernidade, que se alastravam pelo mundo após a Segunda Guerra Mundial pouco efeito tiveram no país, já que historicamente tínhamos dificuldade de distinção entre as esferas públicas e privadas, permitindo a concentração de poder municipal (inclusive nas Câmaras) aos latifundiários ou pequenos fazendeiros, os únicos que poderiam ter efetiva autoridade e autonomia.

Vimos isso recentemente, nas discussões sobre a legislação brasileira acerca de biografias, em que o cerne da questão seria a oposição entre o público e o privado, desta vez manifesto entre os interesses coletivos e os individuais. Em que pese o art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988 garantir que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, o art. 220, § 2º proíbe qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, e dependendo do interesse, nos limitamos a uma ou outra interpretação.

Principalmente na atualidade, com os relacionamentos digitais em alta, seria importante estabelecer alguns princípios éticos que orientassem condutas pessoais, pois eventos importantes da política mundial foram afetados por esta diferença, quando pessoas pretenderam tornar públicas informações que empresas – ou países – consideravam sigilosos, já que praticamente todos os Estados reivindicam para si o estatuto de instância privada, o que não deixa de ser um contrassenso. Afinal, quando um país como os Estados Unidos viola a intimidade de seus cidadãos, ou até de outros países, arroga-se ao direito de fazer isso em nome do interesse público, confundindo, portanto, o interesse do Estado com o interesse de todos.

Algumas vezes adultos dizem, e postam em mídias digitais, inconveniências, racismos, ofensas, nudez, esquecendo que as fronteiras entre público e privado, já que podemos ser gravados, filmados ou fotografados a qualquer momento, estão cada vez mais esmaecidas e difusas. Então, quando crianças e jovens manifestam problemas na distinção entre os dois conceitos, exteriorizando em redes sociais dados familiares ou pessoais que podem expô-los a riscos ou contrariedades imensas, é fundamental lembrar que estamos inseridos socialmente por meio de relações que desenvolvemos primeiro na família, depois nas escolas e em toda comunidade. O relacionamento em rede é inerente à nossa natureza, e assim sendo, reproduzimos no meio digital todas as mazelas de nossos preconceitos, limitações e condicionantes culturais; público e privado misturam-se cada vez mais em nossa rotina.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.