Arquivo Pessoal – Malu Rodrigues é ilustradora de vários livros infantis.

Leitura visual incentiva observação, atenção e criatividade

 

Era uma vez um livro que não tinha texto. Mas tinha ilustração. Bem… então tinha, sim, um texto. É comum incorrermos no erro de designar assim um livro ilustrado, sem palavras. Esse livro tem na verdade um texto visual ou, como têm sido mais usual dizer, uma narrativa visual.

A imagem é fundamental em um livro infantil. Se ele tem narrativa verbal as linguagens se complementam, dialogam. Mas se, ao contrário, a história é contadas pelas imagens, aos leitores é permitido que criem por si mesmos a história. Cada leitor descobrirá elementos e enredos a partir de referências da própria experiência de vida, e isso desencadeará uma gama diferente e muito rica de lembranças, sentimentos, impressões e emoções.

Quando o adulto permite que a criança faça uma leitura visual e dê asas à sua percepção a respeito dela, está incentivando a observação, atenção, imaginação e criatividade.

O ilustrador é profissional indispensável na literatura infantil. Cabe a ele traduzir o universo por meio de imagens, cores e formas aos leitores de todas as idades.

Esse é o assunto da conversa com a ilustradora e professora Malu Rodrigues. Natural de Ituporanga (SC), reside em Joinville (SC também) desde 1991. Licenciada e bacharel em Artes Visuais e mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Univille, estudou Ilustração na Scuola Internazionale d’illustrazione Stepán Zavrel, em Sarmede, Itália.

Malu tem participação como ilustradora em vários livros de literatura infantil e é autora do livro “A Narrativa Visual na Literatura Infantil Brasileira: Histórico e Leituras Analíticas”, pela Editora Univille.

Vamos lá?

 

TD – Qual o papel da ilustração na literatura infantil?

MR – A ilustração nos livros possibilita a abertura do olhar do leitor, a ampliação da leitura e uma aproximação do leitor com a história. No período de alfabetização a ilustração assume papel paradidático, ela é uma ferramenta de aprendizagem linguística. A criança está passando da oralidade e da leitura de imagens para o universo da escrita verbal, então a leitura da imagem como código de representação da realidade é natural para ela, e na alfabetização auxilia na compreensão dos códigos verbais. Ou seja, a imagem se limita a assumir papel de representar o que o texto verbal propõe. Essa limitação não acontece com os livros ilustrados e os livros-álbum, em que a ilustração não só abre possibilidades de sobrepor novas camadas de leituras sobre a história, por meio de um diálogo entre as linguagens, como também assume protagonismo, que é o caso dos livros de narrativa visual, nos quais a história é contada inteiramente em imagens.

A leitura e compreensão dos códigos imagéticos enriquece o olhar do leitor e amplia sua visão de mundo, possibilitando o desenvolvimento de um olhar apurado para o mundo simbólico.

Walter Benjamin em seu livro “Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação” reflete sobre o papel da ilustração nos tempos em que os livros serviam a um propósito moralizante e eram repletos de regras maçantes. Ele escreve que foram com as ilustrações que as crianças e os artistas se identificaram e exerceram seu livre pensar.

TD – O que não pode faltar na ilustração de um livro infantil?

MR – Textualidade. Uma ilustração que não acrescenta possibilidades de leitura além do texto verbal, é apenas um eco, um papagaio repetindo de forma rudimentar parte do texto verbal. Quando isso ocorre em livros de literatura infantil, a qualidade literária fica comprometida. A ilustração precisa trabalhar nas frestas do texto verbal, precisa oferecer um novo olhar para o tema da história e não repeti-la visualmente.

TD – Existem técnicas mais adequadas?

MR – Não necessariamente. O que existe é o bom senso de identificar o público leitor da história, embora muitas vezes o tema possa ultrapassar esses rótulos. Se forem livros para bebês e crianças muito pequenas, o ilustrador deve evitar usar traços muito estilizados, deve dar preferência a uma paleta colorida e traços gráficos bem definidos. Porém, para leitores em fase de alfabetização em diante as possibilidades de uso de diferentes técnicas e traços é imensa.

TD – O uso das cores é pensado e trabalhado a partir de quê?

MR – Se levarmos em conta somente o conceito definido para o desenvolvimento das ilustrações, então existem alguns fatores que determinam a escolha da paleta de cores para determinada história.  A cor é um recurso de leitura visual, ela tem textualidade. Por exemplo, tons quentes e tons frios comunicam de forma diferente no discurso, podem indicar sobriedade, alegria, tristeza ou podem indicar aproximação ou distanciamento entre personagens no discurso visual.  Porém, a cor pode não assumir esse discurso textual mais evidente e vir apenas como elemento que não interfere diretamente no discurso. É o olhar atento do leitor que identificará as intenções textuais presentes no uso de determinada paleta de cor.

TD – Ilustração e texto são duas linguagens? De que forma elas dialogam melhor?

MR – Sempre gosto de usar o termo leitura híbrida para os livros ilustrados, porque no conceito de hibridismo, que tem origem na Biologia, dois elementos se cruzam e formam outra coisa. Porém, mesmo formando esse novo elemento, ainda é possível percebermos a presença dos dois elementos primários. Assim é com o livro ilustrado: temos dois tipos de textos, um verbal e o outro visual; eles se cruzam e dialogam dentro do espaço do livro e a leitura se dá de forma efetiva nesse embricamento das linguagens. Uma linguagem complementa a outra. Acredito que essa é a melhor forma delas dialogarem. É por conta dessa construção textual autônoma entre palavra e imagem que na literatura infantil podemos ter dois autores: o escritor e o ilustrador.

TD – Nos impressos (revistas ou jornais, por exemplo), a legenda não deve dizer exatamente o que diz a fotografia. É desnecessário e redundante. Como se dá isso com a ilustração de um livro infantil?

MR – O mesmo acontece com as ilustrações para livros infantis. Boas ilustrações precisam ter algo a dizer, não devem ser meros ecos do texto verbal. Quando chega a mim uma história para ilustrar, procuro pensar sobre esse tema e dentro do possível enriquecê-lo acrescentando personagens, paisagens e elementos que darão ao leitor um novo olhar para a história que complementa o texto verbal, mas que também vai além.

Às vezes o narrador presente na narrativa verbal está em primeira pessoa, todavia, na narrativa visual pode vir em terceira pessoa e ser onisciente. A identificação desse caráter narrativo ser diferente na imagem vem apenas da observação do enquadramento da cena e do papel dos personagens. Por exemplo: uma cena de um pássaro voando e observando a cidade lá embaixo; na virada da página uma nova cena se descortina, ele está pousado em uma árvore, observando um homem solitário sentado na praça. Esse pássaro pode ser a personagem que narrará em terceira pessoa a jornada daquele homem. Contudo, no texto verbal é o próprio homem quem narra a sua história, ou seja, uma narração em primeira pessoa. Apenas com essa decisão de que tipo de narrador terá a história, o ilustrador consegue colocar acontecimentos na cena que o narrador em primeira pessoa do texto verbal não consegue ver, e isso abre uma gama de possibilidades narrativas. Esse é só um recurso que confere camadas de leitura diversas daquela do texto verbal, porém há muitas outras.

TD – Um livro que “não tenha texto” precisa, necessariamente, explicar e esclarecer mais?

MR – É ainda muito comum o uso do termo “livro sem texto”, embora não seja correto. Inclusive, ele aparece na teoria da literatura infantil e foi originalmente mencionado, segundo o escritor e ilustrador Luis Camargo, por uma criança ao se deparar com um livro em que a história era contada inteiramente pelas imagens.  A terminologia mais difundida é livro de imagem, mas nos últimos anos o termo que vem ganhando corpo é livro de narrativa visual, porque especifica melhor, afinal um livro de fotografia pode ser um “livro de imagens”.

Não existem livros sem textos.  O próprio objeto livro suscita texto, não de forma concreta, mas conceitualmente falando. Vou citar um exemplo que vivi: quando estava terminando a Faculdade de Artes Visuais, minha pesquisa de conclusão de curso foi sobre Livros de Artistas. São livros conceituais geralmente únicos ou de pouquíssima tiragem. Produzi três obras físicas, três livros objeto. Um deles era um livro completamente em branco, incluindo a capa. Quando o segurei nas mãos, pensei: ‘Uau! Essa brancura pode assumir qualquer coisa que o leitor quiser!’ O fato de eu pensar isso já conferiu textualidade à brancura daquelas páginas, afinal o vazio pode falar muito, não é?

Após eu usar esse livro branco em diferentes paisagens e registrá-lo em fotografias, fiz um acordo com o tempo: escreveríamos juntos naquelas páginas. Então, deixei aquele livro completamente alvo no tempo, sofrendo todas as intempéries do clima. O livro branco ficou ao relento por semanas e eu fui analisando a construção da escrita dele. O vento, os fungos, os insetos e plantas escreveram em suas páginas. Após esse processo, chegou a minha vez de escrever nele. Por semanas coloquei impressões do meu pensamento naquelas páginas.  O resultado foi um livro de dois autores, o tempo e eu, que oferece ao leitor diferentes camadas de leitura.

Na literatura infantil a imagem pode contar sozinha a história, ela não precisa da linguagem verbal, salvo o título, que serve como índice na leitura. Contudo, quando ofertamos ou lemos esse tipo de livro, normalmente caímos no erro de explicar a história que está sendo contada. Não devemos fazer isso. Porque a imagem opera em outro campo. Sua leitura acontece aos saltos, diferente da leitura verbal, que no Ocidente é sequencial, da esquerda para a direita e de cima para baixo. Nas cenas imagéticas os elementos ditam o ritmo e as camadas de leitura vão se revelando conforme a visão de mundo do leitor, pautada sempre nos índices e elementos apresentados no texto visual.

Se estamos trabalhando em grupo com um livro de narrativa visual por exemplo, poderemos instigar discussões e desdobramentos em forma de novos textos imagéticos ou verbais, feitos a partir do tema discutido no livro. São desdobramentos do texto visual, novos olhares sobre as questões abordadas no livro. Porém, se explicarmos a história traduzindo oralmente ou na escrita o que as cenas visuais apresentam, isso apenas servirá para empobrecer a leitura.

O que o mediador de leitura deve considerar quando trabalha a narrativa visual com crianças, por exemplo, é instigar o olhar delas, enfatizando a ação dos personagens no desenrolar da trama, evidenciando o fio condutor da narrativa que pode ser um objeto, uma personagem ou quem sabe a presença de uma cor diferenciada na paleta, que conduzirá o leitor para a próxima página. Mediadores de leitura precisam suscitar pontinhos de interrogação nos olhos dos leitores e instigá-los a descobrir no texto, tanto visual, quanto verbal, a possibilidade de encontrar os pontinhos de exclamação que indicam que o processo de identificação, decodificação e fruição da leitura se completou no leitor.

 

TD – Normalmente as obras têm início com o texto. Na sua opinião, um livro pode começar com a ilustração e depois ganhar um texto verbal?

MR – Sim! Aliás, existem muitos livros em que as histórias começam com uma narrativa visual e depois entra o texto verbal. Eu costumo usar esse recurso quando ilustro livros. Penso que isso confere uma carga mais cinematográfica ao livro. Abrir a história visualmente aguça a curiosidade do leitor e quebra o ciclo vicioso de procurar na ilustração o eco do texto verbal.

Tem um exemplo bem conhecido de livro que opera nessa dinâmica de texto visual e texto verbal intercalando a narrativa. É “A Invenção de Hugo Cabret”, do estadunidense Brian Selznick, que deu origem ao filme de mesmo nome. O escritor é autor do texto verbal e do texto visual. Ele tem outro título em que utiliza o mesmo conceito narrativo, “Sem Fôlego”, ambos editados no Brasil pela SM.  “A invenção de Hugo Cabret” inicia com uma narrativa visual. São cenas de uma lua que vai se distanciando no céu ao virar das páginas até se abrir numa cena noturna panorâmica de Paris e começar a fechar num zoom até uma estação de trem e focar num menino. As cenas iniciais do filme são praticamente as mesmas das ilustrações do livro. Durante todo o livro a história será contada nas duas linguagens, uma dependendo da outra para continuar.

TD – A ilustração que acompanha o texto verbal, precisa respeitar também a faixa etária da criança? Há essa preocupação? 

MR – A literatura infantil, e por consequência a ilustração, tem papel fundamental na formação das crianças, e pode contribuir e muito para prepará-las para o mundo.  Então, temos responsabilidade na forma como apresentamos essas imagens. Não é uma regra rígida respeitar a faixa etária, há uma questão de bom senso. Existem temas tristes e violentos na sociedade que não devem ser ignorados, porém, há formas mais sutis de abordá-los, o que não quer dizer que devemos produzir apenas imagens fofinhas e harmoniosas.  Crianças não são tolas por natureza, nós adultos é que podemos deixá-las assim, tornando-as mais vulneráveis aos ambientes com as redomas que impomos. Temas polêmicos podem e devem ser abordados na literatura infantil, afinal essa é a realidade do mundo. 

Angela Lago, ilustradora e escritora de livros de literatura infantil e que foi uma das maiores e mais premiadas do país, dizia que nunca pensava na faixa etária quando escrevia e ilustrava. Temos a mania de querer colocar tudo em gavetinhas organizadas para apaziguarmos nossas dúvidas, mas a verdadeira obra de arte nunca cabe nelas, por isso ela transcende os rótulos e conquista o leitor da mais tenra idade ao ancião.

Muitas vezes a faixa etária é limitador de possibilidades leitoras. Pelo menos entre os livros ilustrados. Um pré-adolescente dificilmente frequentará o setor de livros ilustrados porque ele “quer livros com mais textos” no sentido literal da palavra, para se sentir um leitor adulto. Mas quem colocou isso na cabeça dele? Em todos esses anos de contato com a literatura pude me deparar com livros que, com poucas páginas, me marcaram mais que romances de 300 páginas.

TD – A ilustração para crianças conquista também os adultos?

MR – Com certeza! Posso dizer que eu sou um exemplo. Meu contato com a literatura infantil aconteceu já na fase adulta. Nunca tive livros infantis ilustrados disponíveis na minha infância pobre de escola estadual de interior. Fui conhecê-los quando me mudei para um grande centro urbano e me tornei mãe, então nunca mais larguei essa vida (risos).

Temos verdadeiras obras de arte disponíveis no Brasil, livros com ilustrações riquíssimas, repletas de poesia imagética que enchem nossos olhos. E o melhor é que são acessíveis. Visualidades gráficas para serem difundidas para além das paredes de museus e galerias de arte.

 Durante toda a minha vida acadêmica tive contato com a literatura infantil, inclusive no mestrado, que não era voltado para Educação. Sempre que eles eram usados como ferramenta de estudo em sala de aula, era unânime o interesse dos adultos por esses livros e, geralmente, o sentimento geral era de enorme surpresa. A grande maioria das pessoas que não está no meio educacional ou não trabalha no mercado editorial, tem contato apenas com uma literatura infantil mercantilista de gôndola de livraria, repleta de livros pop-up, livros brilhantes, “fofinhos”, de princesas estereotipadas, dinossauros ferozes e personagens infantis televisivos. A literatura infantil vai muito além isso. Nos livros infantis é possível encontrar toda a sorte de temas representados brilhantemente por ilustradores geniais, temas caros à condição de ser humano, que vão da crítica social à comédia e muita poesia visual. Um leitor completo é aquele que sabe ler palavras e imagens. E para que melhor que a literatura infantil para exercitar essa leitura?

 

Acompanhe o trabalho de Malu Rodrigues no Instagram: @malurodrigues.ilustra

 

*Fonte de pesquisa para temas e entrevistas: Instituto Fatum.