Ilustração: Tita Blister

Como se fosse o primeiro dia de aula em uma escola desconhecida, com novos amigos, ironicamente entramos em lugar familiar e ao mesmo tempo, estranho como iríamos lidar com isso.

Sabíamos que ali haviam regras, talvez alguma hierarquia. Abarrotamos a “cantina” de guloseimas como se todos os dias fossem fins de semana e os banheiros como se tivéssemos infinitas diarreias.

No começo da reclusão, tudo parecia um domingo, o que comíamos, o tempo de sono,as conversas longas, os livros lidos em meia hora, infinitos filmes do streaming. De repente, tudo virou segunda, toda segunda uma quinta, toda sexta um feriado e quando aconteceu um feriado todo mundo estava bem maluco.

As brigas nas caixas de comentário ficaram acirradas. A equipe de governo briga, a vizinha briga, o casal briga, o pai, a mãe, os velhos brigam, a sanidade briga com a lucidez dia a dia.

Depois desse recreio, pausa virou pare! O paradoxo da relação humana veio a tona. O clamor da solidão sente falta do calor da multidão. E aglomerar passou a ser crime inafiançável. Com vontade de carne e ojeriza de toque.

Fui no mercado com burca, porque máscara é pouco para mim. Quatro horas da tarde de uma terça. Calculei que seria pouco provável circulação de humanos. Eis que estou a escolher pães e uma mulher roça no meu braço. A petulante ultrapassou a faixa de gaza invisível, e eu gritei como uma bomba num campo minado.

Sai atônita e num outro corredor de achocolatados, um homem mascarado e de bochechas gordas e rosadas vai se aproximando e eu dou outro grito petardo. Ele me olha pelas lentes dos meus óculos escuros e minha burca de póas azul-marinho e branco se embola no meu cabelo volumoso.

Eu encho a cesta de guloseimas, potes de salada de frutas e pudim caseiro. Eu paro para brincar com um leitor ótico, porque acho que as letras luminosas vermelhas “leia aqui”, vão me revelar um recado oculto do Universo.

Um homem lindo me olha por vários corredores. Retribuo. Penso, “como pode me olhar daquele jeito com a burca?”, mas estava de short-saia e só depois pelo reflexo de uma geladeira com a porta transparente, notei que a burca havia caído. Eu estava de batom, sempre estou, exceto quando vou dormir e tomar banho.

Ele não era o homem da minha vida. Pensei em alguém que também não era. E aquele também não. Pensei que posso encontrá-lo depois da quarentena, aniversário, segundo semestre, pandemia ou quem sabe, da expansão do buraco negro emocional.