Aristóteles, ao lado de alguns grandes acertos, elaborou em sua época uma tese sobre a imutabilidade dos céus, em que discorria sobre a crença em um cosmo hierarquizado e dividido em dois mundos, terrestre e celeste. E isso subsistiu até a revolução provocada por Galileu, base da moderna ciência, que pela primeira vez imaginou um Universo aberto e sem limites, regido pelas mesmas leis de validade geral no Céu e na Terra.

À partir daí a perfeição deixa de existir – ou se aplica a todo o espaço infinito -, com a mesma geometria e leis da física; ou seja, refutar a  imutabilidade do céu, cânone dos cânones, permitiu a admissão do movimento da Terra e o surgimento de uma ciência capaz de explicar a natureza e nos prover todo o desenvolvimento e inovações tecnológicas que, mesmo neste planeta injusto e desigual, concedem algum conforto e mais acesso ao alimento.

Da mesma forma, talvez seja necessária alguma revolução galileana em nosso pensamento racista e conservador, que deseja que sigamos eternamente presos ao que era antes, à forma anterior de resolver alguns assuntos, ao aspecto físico e de vestuário daqueles que detém a verdade e devem ser acatados.

Não é de estranhar, pois mesmos aqueles que foram denominados Iluministas, embora preocupados com a questão do progresso, consolidaram uma visão fragmentada e hierarquizada dos seres humanos, e com raras exceções viam homens brancos ocupando a ponta da sociedade e os negros sua base. Logo depois nasce o que hoje chamamos burguesia, que vai ocupando lugar destacado no Estado e impondo suas demandas, iniciando a ocupação de um poder político consolidado em 1789, com o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade universalizando o modelo do homem europeu.

Avanços acontecem, e muitos. Mas o pensamento racista não desaparece, e o ideal de vestimenta segue o calcado em cortes europeias, muito luxo, muita seda, muito veludo. O comportamento adequado é o nobre, refinado na convivência aristocrática entre brancos que não tomam muito banho mas se cobrem de rendas e abusam dos perfumes mais raros e caros.

Outro mundo talvez seja possível, mas apenas se vier recomendado pelos mais apurados de paladar, aqueles educados entre os mais destacados e menos periféricos, que possam ser reconhecidos como luminares de nossa sociedade, de fino trato, falando baixo e sem exigências descabidas, gente enfim acostumada a mandar sem levantar a voz, pois foram obedecidas desde sempre.

Em política, reservam espaço para seus filhos, sobrinhos e netos, pessoas diferenciadas que serão eleitas porque seus sobrenomes são onipresentes desde muitos anos atrás, tem tradição de comando e são conhecidos de todas as boas famílias no topo da ordem social.

Por isso, a dificuldade de conviver em ambiente formal com menino que usa camisetas no dia a dia, que se apresenta com cabelo pouco disciplinado e, supremo crime, vem da periferia. Não podemos acreditar que haja bom senso naquilo que diz. Não podemos aceitar seus modos, sua cosmovisão, sua forma direta e sem rodeios de falar. Aparentemente enfrentamos uma crise de valores e crenças, em grande parte determinada pelas imensas transformações tecnológicas que aceleram os processos de mudança social, por uma economia instável e mudanças radicais no perfil daqueles que falam pela comunidade.

Mesmo que hoje liberdade de expressão e de escolha, igualdade, justiça, saúde, vida digna, sejam valores tidos como supremos em nossa sociedade, há pouco mais de cem anos pessoas eram escravizadas dentro do aparato legal do Estado e o racismo era tido como defesa social. Ainda não ultrapassamos a escravidão, ela apenas não é mais legalizada, embora continue a ser efetivada, como bem mostra a quantidade de pessoas frequentemente libertadas de situações análogas à escravidão, e as humilhações e agressões a que submetemos tantas outras.

Certamente a solução deste grave problema passaria pela melhoria de nosso sistema educacional, tornando mais inclusiva nossa realidade.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.