RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O medo passou a ser parte da vida dos policiais militares Anderson Valentim, 41, e Ana Carla Santos de Oliveira, 37, moradores do Rio de Janeiro, estado que já conta 71 mortes de policiais militares neste ano.

Diagnosticado com transtorno do sono e estresse, Valentim integra uma tropa com 3.000 homens licenciados pela psiquiatria, de acordo com a corporação. Diferentemente da ex-policial Ana Carla, que ao desenvolver síndrome do pânico foi excluída da Polícia Militar, em 2015.

Segundo dados oficiais da Polícia Militar, em 2016, 1.937 foram afastados das ruas por problemas psicológicos. No ano seguinte, em 2017, foram 1.659. Até agosto deste ano, a corporação informou que são 2.500 agentes em casa para tratamento psicológico e 500 desempenhando funções apenas nas áreas administrativas. 

No início do mês passado a polícia informou por meio de nota que cerca de 3.000 licenças psiquiátricas serão reavaliadas pelos médicos das Forças Armadas. Segundo o Gabinete de Intervenção Militar, o objetivo é aumentar o efetivo da tropa nas ruas. 

No entanto, de acordo com a Associação de Ativos, Inativos, Pensionistas das Polícias Militares, Brigadas Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (Assinap), que conta com mais de 30 mil associados, são mais 4.000 policiais de licença hoje em dia.

Segundo a PM, do efetivo atual de 43.804 agentes, 26.227 estão aptos para desempenhar funções operacionais de combate. Os outros 17.577 estão em trabalho administrativo nos batalhões ou foram cedidos para outras instituições. Os 41 batalhões no estado têm apenas quatro psiquiatras nas juntas de saúde, um para cada 10.951 policiais. Questionada, a polícia reconheceu que o número de psiquiatras é inferior ao ideal.

“Eu achava que estava tudo bem, até que fui fazer o exame de rotina, e um psicólogo me perguntou se eu estava dormindo tranquilo. Dormia tarde, às vezes tinha insônia, mas pensei que fosse normal devido ao estresse rotineiro que um policial vive hoje em dia, principalmente no Rio”, diz o sargento Valentim, na polícia há 13 anos e afastado por seis meses, entre 2016 e 2017. 

Ele afirma que, durante a licença, o tratamento recebido na polícia não foi o ideal, e procurou auxílio no SUS. “Nós somos acostumados com uma carga de serviço tão grande que, se falarmos que estamos com problemas, somos chamados de frouxos. Imagina um policial tendo que trabalhar todo dia em favela? A gente acha que vai morrer a qualquer momento.”

De acordo com o sargento, o Regime Adicional de Serviço (RAS, uma espécie de hora extra) é o que deixa o policial mais suscetível a desenvolver transtornos psicológicos. “O RAS gera ansiedade. Cerca de 12 mil policiais fazem hora extra, não descansam direito e ainda ficam estressados pensando na próxima escala.” 

“Quem cuida do policial hoje em dia? Estamos largados. Somos considerados cidadãos de segunda classe, e muito porque o governo nos coloca assim. Não temos estrutura dentro da Polícia Militar. Se não melhorar, não sei o que vai ser da sociedade no futuro”, afirma.

A síndrome do pânico de Ana Carla começou em novembro de 2013, quando um colega morreu em operação na Cidade de Deus. “Eu estava de férias quando soube da morte dele. Quando voltei para o trabalho eu não me sentia mais a mesma. Comecei a ter medo, suava frio, tinha taquicardia”, diz. 

“Foi em 2015 que a crise apertou. Saí do serviço e fui para o hospital porque pensei que ia infartar. Foi quando a médica me encaminhou para a junta de saúde e lá o médico disse que eu estava com crise de ansiedade. Depois, meu diagnóstico foi síndrome do pânico”, conta a ex-policial. 

“Me deram uma licença de seis meses, mas não recebi o devido tratamento. Depois me deram mais seis meses, fiquei um ano licenciada. Quando voltei, depois de um mês, me chamaram e eu já estava excluída da polícia”, afirma. “Eu entrei em depressão. Não tinha vontade de sair do quarto, não escovava os dentes, não tomava banho. Pensei em morrer várias vezes.”

A renda de Ana Carla caiu. Leite, arroz, feijão começaram a faltar dentro de casa. Segundo ela, a polícia não pagou nada com a sua exclusão. “Eu decidi encontrar forças para ajudar meu marido. Então, comecei a ser manicure. Faço crochê também. Teve dias que eu, meu filho e meus cachorros nos alimentávamos de arroz com água.” 

“Meu sonho é voltar a ser policial. Tenho alguns processos correndo para me reincorporar na PM. Estou há três anos pensando no dia em que eu vou vestir essa farda de novo, porque eu estou manicure, mas eu sou sangue azul. Desde criança”, afirma. 

“Meu erro na polícia foi ficar doente. Meu castigo, ser excluída. O que a gente faz quando nos afastam de uma profissão que tanto amamos?” Questionada sobre a exclusão de Ana Carla, a Polícia Militar informou que não vai se posicionar sobre o caso.

FICÇÃO IMITA A REALIDADE

Um dos roteiristas do filme “Tropa de Elite”, Rodrigo Pimentel, ex-policial do Bope (Batalhão de Operações Especiais), explicou que o capitão Nascimento, papel vivido pelo ator Wagner Moura, foi inspirado em conversas que teve com seus colegas na corporação.

“Quando eu fiz o personagem do capitão Nascimento e do Neto, escutei policiais com algum tipo de estresse. Por exemplo, o Neto, vivido pelo ator Caio Junqueira, era um homem que queria ser herói. Não tinha medo de nada, era corajoso demais e audacioso demais. Isso pode ser um indício de problema psicológico”, disse.

“O Nascimento é uma construção de vários colegas do Bope que eu escutei. Ele não é a representação de uma pessoa só, mas de vários policiais que passam por estresses e transtornos dentro da polícia”, acrescentou Pimentel.

O roteirista disse ainda que também foi afastado do Bope pelo seu superior por apresentar cansaço e estresse. “Eu fui chamado e meu comandante me perguntou se eu estava bem. Sugeriu que eu ficasse em casa uns dias para descansar”, explicou. “O policial do Bope vive operações diárias. O curso que a gente faz para entrar não se compara a pressão que um agente sofre no cotidiano”, finalizou.”

Para a coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (Gepesp), vinculado ao Laboratório de Análise da Violação LAV/Uerj, Dayse Miranda, segurança pública passa pela segurança dos policiais. 

“Se eles não têm condições emocionais, vão dar tiros a esmo. Dois anos atrás, um policial que estava em tratamento psiquiátrico, afastado, durante uma operação especial, foi mandado para o serviço e deu 50 tiros a esmo.” 

“Quando você prioriza a saúde mental do policial, você está pensando na proteção da sociedade”, diz. “Como uma instituição que tem até vários psicólogos, mas sem auxílio de um psiquiatra direito, vai dar conta de mais de 40 mil homens?”

Dayse também diz que não basta apenas investir em equipamentos e viaturas modernas, mas é necessário que o policial tenha uma condição boa de trabalho. “A maioria dos policiais com quem eu conversei que tentaram se suicidar, disseram que é porque não se sentem valorizados nem pela sociedade nem pela corporação”, disse. “Estamos falando de homens doentes, desamparados, que se sentem desqualificados”.