Entre os muitos cientistas e intelectuais brasileiros que nos orgulham, dois em especial merecem ser lembrados: Milton Santos: geógrafo, graduado em Direito, doutorado feito em universidade francesa, foi um dos grandes nomes da renovação da geografia e globalização, tendo ganho o prêmio Vautrin Lud, considerado o “o Nobel da geografia”. Poucos pensadores foram tão clarividentes quanto ele, seus escritos e estudos sobre a pobreza já apontavam para a realidade visível atualmente, de manifestações populares articuladas por redes sociais digitais. Com considerações sobre o ser humano deixar de ser o centro do mundo, lugar cada vez mais ocupado pelo dinheiro, ele previa ações políticas em que milhares de pessoas ocupariam ruas das maiores cidades na procura de justiça e cidadania.

Outro excepcional brasileiro foi Josué de Castro, médico voltado à nutrologia, professor, que trabalhou como cientista social, envolveu-se na política e escreveu obras do quilate de Geografia da fome, Geopolítica da fome, Sete palmos de terra e um caixão e Homens e caranguejos. Por sinal, foi também Embaixador brasileiro junto à Organização das Nações Unidas (ONU); e trouxe para debate os temas da fome e do subdesenvolvimento. Ele assegurava que apenas o desenvolvimento seria forma de superar as desigualdades sociais, conduzindo a uma “ascensão humana” por meio de mudanças sociais sucessivas e profundas. Entre seus prêmios, os da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos, Prêmio Franklin D. Roosevelt. O Conselho Mundial da Paz concedeu a ele o Prêmio Internacional da Paz e o governo francês o condecorou como Oficial da Legião de Honra. Foi muitas vezes indicado ao Nobel da Paz.

Ambos falavam da fome, que além da física – real e presente até hoje em território brasileiro – sempre foi também a de equidade e inclusão. Hoje, se olharmos as manifestações ocorridas no Brasil e no mundo, ao lado daquelas caracterizadas por palavras de ordem, pedindo mais investimentos em educação, segurança, saúde e outros temas relevantes para a vida comunitária, vemos outras não tão significativas para a vida social, mas sim interessantes para a vida pessoal, como se a individualidade se sobrepusesse ao coletivo. Tudo se passa de forma que na vida do cidadão das redes sociais, uma nova modalidade de gregarismo surgisse construindo uma identidade coletiva que converge o espaço público para a amplificação do descontentamento pessoal diante das questões de ordem social, econômica e política; de maneira geral, políticos tem conseguido conclamar participações populares para temas que são relevantes para suas agendas pessoais, algumas vezes parece que perdemos o sentimento de comunidade, de identificação com as reais necessidades de todos, que deveria nos despertar solidariedade e vontade de atuar pelo bem comum.

Fome, por exemplo, é pauta há milhares de anos no mundo, e boa parte do sofrimento da população de mais baixa renda está associada com questões alimentares e nutricionais, e isso se dá tanto pela ausência do alimento, quanto pela má qualidade da alimentação. Josué de Castro já falava da “fome oculta”, e isso se dá na desnutrição ou subnutrição em função de inadequação quantitativa (energia) ou qualitativa (nutrientes) da alimentação ingerida diariamente nas camadas populacionais com menos acesso ao sistema educativo. Assim, a obesidade é uma das características que se soma à precariedade na alimentação brasileira, junto com a desnutrição infantil crônica (baixa altura para a idade) e, em menor grau, a desnutrição aguda (peso inadequado para a altura). São mazelas para as quais não dispomos de dados regulares e atualizados, e alguns professores do ensino fundamental assistem, horrorizados, aos desvios de dinheiro das merendas, ou as oferecidas com baixa qualidade nas escolas de periferia, onde muitas vezes esta é a única refeição diária.

É preciso ser negligente e apartado do mundo real para desconhecer o problema da insegurança alimentar no país.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.