Franklin de Freitas – Sabbaga atuou por mais de cinco décadas em Curitiba

Após 54 anos de carreira, período no qual realizou cerca de 50 mil procedimentos cirúrgicos em crianças e adolescentes, o cirurgião-pediátrico Cesar Cavalli Sabbaga resolveu “pendurar o bisturi”. Prestes a completar 79 anos – o aniversário será celebrado no próximo dia 4 de dezembro —, o médico realizou seu último procedimento cirúrgico no último dia 7, curiosamente no mesmo mês em que o Hospital Pequeno Príncipe (HPP), onde atuou a maior parte de sua carreira, celebrou seu centenário.

Ao longo de mais de cinco décadas atuando na área de saúde infantojuvenil, o médico foi testemunha da evolução da especialidade a qual decidiu se dedicar. Natural de Ponta Grossa, formou-se em 1965 na Universidade Federal do Paraná (UFPR), numa época em que sequer era ofertada a especialização em cirurgia-pediátrica no Paraná.

A ideia de seguir para essa área surgiu a partir de uma sugestão do seu primo, o urologista Emil Sabbaga, coordenador do primeiro transplante renal do Brasil. “Falei para ele que tinha pensado em fazer urologia, mas que queria ir para a cirurgia. Aí ele falou ‘por que você não faz cirurgia infantil?’ Eu ainda perguntei: ‘Mas tem especialista em cirurgia infantil?’”

Partiu então para São Paulo no ano seguinte à sua formatura, para fazer a especialização no Hospital Infantil Darcy Vargas, junto com o colega Antônio Ernesto, que segue trabalhando no HPP.

“A gente tomou conhecimento dessa especialidade porque as crianças sofriam muito na cirurgia sem um especialista, porque a criança não é um adulto em miniatura. É completamente diferente. A anatomia é diferente, o comportamento frente a um trauma é diferente de um adulto. Então no mundo inteiro percebeu-se a necessidade de cirurgião especializado em crianças.”

Desde então, a especialidade evoluiu – e muito. “A taxa de sobrevida aumentou muito. A cirurgia pediátrica eu peguei quase do seu iníocio, estava quase engatinhando, e hoje é uma especialidade adulta, totalmente estabelecida no mundo inteiro, e com um número enorme de cirurgiões dedicados à especialidade, todos eles com muito entusiasmo.”

E eis que, 50 mil cirurgias depois, é chegada a hora de dizer adeus aos centros cirúrgicos. “Eu me propus a parar enquanto estivesse no auge”, explica Sabbaga, que a partir de agora se dedica ao ensino da especialidade aos residentes do HPP e também a cuidar de cachorros de rua, numa iniciativa que já há algum tempo desenvolve com sua esposa, ex-instrumentadora cirúrgica e que conheceu no hospital.

‘Criança não é um adulto em miniatura’

Bem Paraná — Por que o senhor optou pela cirurgia pediátrica?
Cesar Sabbaga — Eu sempre gostei de cirurgia. O ramo que eu queria fazer durante o curso era urologia. Mas chegou a hora e fiquei em dúvida entre pediatria ou urologia. No último ano, sexto ano na Federal, fui à Londrina porque eu tinha um primo, o Dr. Emil Sabbaga, que era urologista da USP, em São Paulo, e que foi o coordenador do primeiro transplante renal do Brasil. E ele ia fazer uma palestra em Londrina. Contei para ele que tinha pensado em fazer urologia, mas queria cirurgia… Aí ele falou ‘então por que você não faz cirurgia infantil?’.

BP — E a área ainda é de interesse do futuro médico?
Sabbaga — Primeiro lugar, está diminuindo (a quantidade de pediatras), mas o Brasil ainda tem muita criança. E a gente tomou conhecimento dessa especialidade porque as crianças sofriam muito na cirurgia sem um especialista, porque a criança não é um adulto em miniatura. É completamente diferente. A anatomia é diferente, o comportamento frente a um trauma é diferente de um adulto, não dá para simplesmente dividir as doses por pesos que dá errado, o metabolismo é diferente. A cirurgia pediátrica eu peguei quase do seu início, estava quase engatinhando, e hoje é uma especialidade madura, totalmente establecida no mundo inteiro, e com um número enorme de cirurgiões dedicados à especialidade, todos eles com muito entusiasmo.

BP — Quais foram os momentos mais marcantes e também os mais dramáticos de tua carreira?
Sabbaga — Teve uma criança que era muito simpática, muito alegre, queria ser operado. Ele não conseguia comer porque tinha uma passagem fechada. Eu operei, o prognóstico era bom e depois de três dias ela teve alta. No dia seguinte ela voltou muito mal, onde tinha feito a sutura abriu, fez uma infecção visceral, e morreu. Um menino de oito anos, que antes da cirurgia estava alegre, conversando, louco para ser operado. Quando chegou aqui falou para mim ‘não fique preocupado, tio, é só um mal-estar passageiro’. E no dia seguinte ele morreu. Isso marca indelevelmente a gente. Na minha vida tenho uns cinco ou seis casos desse tipo, mas esse foi o mais marcante. Já os mais marcantes (pelo lado positivo) felizmente são muitos, muitos e muitos. Eu recebi crianças do Brasil inteiro.

BP — O senhor já deu aula em quais universidades? Seguirá lecionando?
Sabbaga — Já dei aula na Federal, saí de lá como professor adjunto, já estou aposentado há mais de 10 anos. Dei aula na Evangélica durante um bom período, por uns 15, 18 anos, e dei aula nas primeiras oito turmas da Universidade Positivo, fiquei lá oito anos. Aí fiquei só com o Pequeno Príncipe. Hoje dou aula para os residentes.

BP — Isso significa muito, não?
Sabbaga — Parei de atender no consultório particular. No ambulatório do SUS onde atendi por muitos anos, e posso dizer que é o mais gratificante. Eu não estou parando com a minha profissão. Eu vou continuar aqui no hospital colaborando com a qualidade de ensino para os cirurgiões pediátricos. Uma vez por semana todos os cirurgiões da equipe se reúnem, fazemos aulas, simpósios, discutimos novas técnicas e os residentes apresentam as crianças que estão internadas para gente discutir conduta, indicação de cirurgia, qual técnica vai ser utilizada. Tudo isso é um ensinamento brutal, imenso. Eles saem daqui perfeitamente aptos.

‘Muitos novos médicos se perdem no caminho’

Bem Paraná — Como está a formação do médico no mercado de hoje? Há uma visão humanizada?
Sabbaga — Muitos se perdem no caminho, porque não vivenciam a medicina humanizada. Se perdem ou entram na profissão só para ganhar dinheiro. Preocupados com o paciente, mas muito mais com o seu próprio sucesso. Isso já acontecia antigamente, mas está acontecendo cada vez mais. Mas quando eles entram para fazer a cirurgia pediátrica, imediatamente eles assumem o perfil de quem está lhes ensinando. E isso é o perfil do cirurgião pediátrico em geral, não só do pequeno Príncipe, mas em qualquer hospital de Curitiba os pediatras têm esse perfil (mais humano). Todos os grandes hospital de Curitiba hoje têm cirurgiões pediatras e eles têm essa visão. A preocupação é com relação à criança e com relação à família. Não é só comigo, não é só no Pequeno Príncipe. É em todos os hospitais.

BP — E como foi sua última cirurgia?
Sabbaga — Foi tranquilo. Era uma cirurgia complicada, já tinha tido várias cirurgias prévias e tinha tido complicações, uma doença no intestino grosso. Teve de ficar um tempo com uma bolsa de colostomia, igualzinha a que tinha o Bolsonaro. E ontem (dia 8) estava recuperado, muito bem. Ele entrou na sala de cirurgia às 9 e saiu às 14 horas, ficou cinco horas lá. Mas de operação mesmo levou duas horas. O resto do tempo é preparo, e isso é essencial e leva tempo.

BP — E como tem sido os primeiros dias de aposentado?
Sabbaga — Demora um pouquinho para cair a ficha. Quando acordei ontem, anteontem, comecei a pensar ‘o que eu vou fazer?’ Nada (risos). Então dá uma certa angústia, mas me preparei e muito para isso. Vou continuar estudando, tenho que dar aulas. E um dia a gente tem de parar de trabalhar. Eu me propus a parar enquanto estivesse no auge, antes de começar a ficar com dificuldade de realizar uma cirurgia. Isso não é ético. Ter lapsos de memória, tremedeira na mão, isso impede de fazer a cirurgia.

BP — E quais os planos agora?
Sabbaga — Trabalhar mais um ou dois anos, talvez, com residência, depois paro totalmente com a medicina. E já faço isso há algum tempo com minha esposa, cuidamos de cachorro de rua. Pegamos eles, levamos em veterinário, tratamos. Tentamos arranjar um doador, se não dá arranjamos uma casinha, deixamos lá no bairro, e as pessoas dos bairros aceitam muito bem, isso é fantástico. Já cuidei muito de criança, deixa agora eu cuidar dos cachorrinhos (risos).

BP- Ex-pacientes, ex-alunos, sempre destacaram o aspecto humano com o senhor. Como era ter de lidar com essa questão mais humana e também enfrentar a parte burocrática?
Sabbaga – Cada vez mais difícil. O custo da cirurgia pediátrica é alto. A criança, se precisa ter uma cirurgia muito grande, principalmente digestiva, ela fica uma semana, 10 dias, 15 dias sem poder se alimentar. E no século passado, início, meio do século passado, elas morriam, porque não se alimentavam por uma semana, dimninuía a resistência, pegava infecção e morria. Então o grande avanço da cirurgia pediátrica foi quando surgiu no fim dos anos 1970, início dos anos 1980, a nutrição parenteral total. O que é isso: é o acesso por uma veia, administra um soro que na verdadeé o alimento completo, tem todos os elementos nutritivos necessários. Então ela fica sem comer nada pela boca e continua ganhando peso, se desenvolvendo. Isso mudou a cirurgia pediátrica brutalmente, foi um dos grande degraus que melhorou o resultado.

A criança quando vai fazer uma cirurgia, seja ela grande ou pequena, vai enfrentar uma situação complicada. Ser operada é um ato novo. Ela vai pro centro cirúrgico acordado, com medo, vendo aquele ambiente estranho, todo mundo com máscara, luzes, ruídos, um cheiro estranho. Para ela aquilo é um ato agressivo. Mas temos como minimizar isso. De que maneira? Começa na consulta. Como é que chega e já começa a examinar a criança sem conversar com ela? Você é um estranho para ela. Tem de conversar. Pergunta o nome, a idade, pergunta onde estuda, pergunta onde trabalha, aí eles dão risada. Uns dizem assim ‘estou desempregado, doutor’. Outros dizem ‘trabalho em casa’. Uns olham assustado, perguntam ‘onde é que eu trabalho, mãe?’. Então isso já faz ela dar risada, cria um ambiente bom. Na hora da despedida dá um tapinha na mão, um soquinho, isso tudo cria um ambiente que quando a gente chega no ambiente cirúrgico ele olha para gente e pensa ‘chegou o cara que eu conheço, que brincou comigo’. Então isso diminui muito. Também ajuda você ver a criançaantes do exame com o anestesista. Você já mostra os instrumentos que vai usar, a máscara, o balão. E outra coisa importante: um dos pais ou parente entrar no centro cirúrgico com a criança até ela dormir. Isso diminui muito o trauma, praticamente acaba.

E tem também o pós cirúrgico. Quando acaba a cirurgia, a crirugia da criança bem feita, ela acorda muito rápido. Terminou a ciorurgia, passou um minuto ou dois já está recuperando e passou cinco minutos está acordado.VAi para uma sala de recuperação pós-anestésica, abre os olhos e começa a chamar a mãe. E aí ela entra e fica com ele até ter alta para ir para enfermaria ou para os apartamentos. E minimizar ao máximo a dor, faz uma anestesia regional para ela acordar sem dor. Se começar a doer, toma analgésico. E alimentar precocemente. Isso tudo minimiza o mal-estar, porque é uma experiência extremamente traumática para a criança.

Como vê a formação dos propfissionais ingressando hoje no mercado? Ainda tem essa pegada mais humana?

BP- O senhor dá aula em quais universidades?
Sabbaga -Já dei aula na Federal, saí de lá como professor adjunto,já estopu aposentado há mais de 10 anos. Dei aula na Evangélica durante um bom período, por uns 15, 18 anos, e dei aula nas primeiras oito turmas da Universidade Positivo, fiquei lá oito anos. Aí fiquei só com o Pequeno Príncipe, hoje dou aula para os residentes. Como é o residente que vem aqui fazer cirurgia pediátrica? Ele tem de fazer três anos de cirurgia geral e depois se candidatar a fazer cirurgia pediátrica. Então para se inscrever como candidato tem de ter formação em cirurgia geral. Aqui temos duas vagas por ano. São três anos de residência e temos em média, por ano, 50, 60 candidatos. Então é um outro vestibular, extremamente complicado. Muitos poucos conseguem atingir.

Parei de atender no consultório particular, no ambulatório do SUS onde atendi por muitos anos, e posso dizer que é o mais gratificante. Eu estou parando com a minha profissão. Eu vou continuar aqui no hospital colaborando com a qualidade de ensino para os cirurgiões pediátricos. Uma vez por semana todos os cirurgiões da equipe se reúnem, da 7h30 da manhã até 9h30, fazemos aulas, simpósios, discutimos novas técnicas e os residentes apresentam as crianças que estão internadas para gente discutir conduta, indicação de cirurgia, qual técnica vai ser utilizada. Tudo isso é um ensinamento brutal, imenso. Eles saem daqui perfeitamente aptos para exercer a profissão de cirurgião pediátrico.

Agora estou lendo mais um capítulo de livro de medicina, então tenho com o que ocupar o tempo ainda. Depois tem de enfrentar a realidade, a gente sabe que é inevitável. Um dia a gente vai morrer, isso é certo e absoluto. E um dia a gente tem de parar de trabalhar. Isso é muito relativo, de cada um, mas eu me propus a parar enquanto estivesse no auge, antes de começar a ficar com dificuldade de realizar uma cirurgia. Isso não é ético. Ter lapsos de memória, tremedeira na mão, isso impede de fazer a cirurgia.

BP – E a esposa do senhor também é médica?
Sabbaga – Ela foi instrumentadora cirúrgica durante muitos anos, comigo mesmo. Trabalhávamos juntos, a conheci no hospital.

BP- E como foi a rotina do senhor nmesses 50 anos de medicina?
Sabbaga- Uma rotina muito intensa. 12 horas por dia de trabalho, finais de semana menos. Na fase inicial, quando  era jovem, cheio de energia, era todo sábado e domingo. Depois vai diminuindo um pouquinho, deixa de dar plantão. Mas ainda agora chegava no hospital às 7h30 e saía daqui 19 horas. Quando parei de dar aula em faculdade, fiquei exclusivamente aqui. E essa é a vantagem de trabalhar aqui (no Pequeno Príncipe), é o único hospital que permite que o cirurgião trabalhe num único local. Como é um hospital beneficiente, 70% dos passageiros são do SUS, não tinha de me movimentar pela cidade. Chegava aqui 7 horas, atendia pacientes do SUS, particular e convênio. Outra vantagem na minha vida é que esse hospital me deu a liberdade de fazer tudo igual, o mesmo tratamento para pacientes do SUS e pacientes particular.