O poeta Antonio Carlos Secchin tornou-se referência sobre a obra de João Cabral de Melo Neto. Sobre o assunto, ele respondeu às seguintes questões.

No centenário de João Cabral, qual a importância ainda ocupada por sua poesia na literatura? Ele foi, de fato, o grande poeta em língua portuguesa do século 20?

Não temos “o” grande poeta da língua, mas vários, cada um grande à sua maneira. O que me parece marcar a contribuição de Cabral é ele não se inserir na chamada “linha evolutiva” da literatura, com suas ascendências e descendências bem assentadas. Nesse sentido, ele é um solitário – sem pais, mas, infelizmente, com muitos filhos adotivos, que diluíram sua notável e rigorosa lição.

João Cabral confessava ser insensível para a música que, para ele, era a mesma coisa que barulho. Isso se refletia na poesia, ou seja, não há algum tipo de musicalidade em seus versos?

No campo da poesia, devemos distinguir, no que se reporta à música do verso, dois elementos: a melodia e o ritmo. A melodia se vincula à rima tradicional, às aliterações, às paronomásias, e, nesse sentido, João Cabral de fato a evitava, julgando-a entorpecente, anestésica, tudo que ele considerava que a poesia não devia ser. Já o ritmo é incontornável, diz respeito à distribuição de tônicas e átonas no verso, e a isso Cabral foi atentíssimo, logrando resultados muito expressivos no emprego, por exemplo, de métricas alternadamente regulares e irregulares ao longo de uma estrofe. Não por acaso, era aficionado da música cigana, em que a voz às vezes parece soar apenas como um grito, mas em que a sustentação rítmica é essencial. De resto, se no Romantismo e no Simbolismo tentou-se fazer de poesia e música artes afins, no contexto cabralino, a afinidade, sem dúvida, seria com as artes plásticas, a pintura, a arquitetura – artes de se ver, não de se ouvir.

Como a cultura e a paisagem dos diversos países onde ele morou e trabalhou marcaram sua poesia de forma expressiva?

Sua poesia decerto seria diversa se ele não houvesse tido a experiência profissional (e pessoal) na Espanha, onde serviu como diplomata. Se é rara a impregnação de autores de língua portuguesa em sua produção poética, é vasta a presença cultural da Espanha, não só no campo literário – ele estudou as letras hispânicas desde as origens, e disso tirou partido -, mas no campo de manifestações populares, como o citado “cante” cigano e a tauromaquia. Tudo reprocessado em sua criação, que, aliás, não hierarquiza “alta” e “baixa” cultura.

Qual importância de Cão Sem Plumas na ruptura radical na linguagem da poesia brasileira?

Trata-se de um magnífico livro-poema, de 1950, em que, de maneira a meu ver pioneira, o compromisso para com social não abdicou do compromisso para com a forma literária. O risco da poesia engajada é ser muito mais engajada do que poesia. Em Cabral, isso não ocorre. E é sintomático que ele, a meu ver o mais denso poeta brasileiro nessa temática, não tenha colaborado nos três volumes de poesia participante do Violão de Rua, de teor mais panfletário, antologias que fizeram grande sucesso no início da década de 1960.

E o que você diria sobre Morte e Vida Severina, ainda impactante em sua denúncia social ao unir fontes cultas com populares?

Creio ser essa a obra mais estimada de toda a história da poesia brasileira, já tendo provavelmente ultrapassado a centena de edições, sem falar nas adaptações para outras linguagens (a TV, o cinema, os quadrinhos). Sim, no texto ocorre aquela mescla não hierarquizada entre o popular e o erudito, mas o sucesso desse auto de Natal pernambucano reside principalmente na denúncia não demagógica de nossas mazelas sociais. É poema contundente sem ser paternalista ou messiânico. Cabral considerava desnecessário “tomar partido” de modo explícito; bastava “dar a ver” o real, que se autodenunciava em sua injusta e escandalosa precariedade.

O epíteto de “arquiteto da poesia” ainda faz jus ao trabalho de João Cabral?

Faz jus, sim, mas, como toda etiqueta, não dá conta da complexidade da obra. Vários outros rótulos poderiam ser a ele atribuídos: o poeta do Capibaribe (a que dedicou três livros), o poeta da antilira… eu próprio o denominei “o poeta do menos”. Melhor, creio, é vê-lo simplesmente como poeta – sem necessidade do acréscimo de nenhum adjetivo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.