BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O governo de Jair Bolsonaro nomeou o policial rodoviário Jerry Adriane Dias para chefiar o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito). Novo diretor-geral do órgão desde o fim de janeiro, ele era, até assumir o cargo, assessor parlamentar do deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ), alvo de ação por supostas fraudes em contratos do Detran-RJ (Departamento de Trânsito do Rio de Janeiro) e cuja campanha foi financiada por laboratório que fatura com exames de condutores, credenciado e fiscalizado pelo Denatran.


Lotado no gabinete do congressista até 24 de janeiro, o ex-assessor assumiu na mesma data o órgão executivo máximo de trânsito no país. Cabe ao Denatran, entre outras atividades, autorizar, controlar e ditar as regras de atuação das empresas que fazem os chamados testes toxicológicos de larga janela de detecção para constatar o uso de drogas por motoristas de caminhões, carretas e ônibus. Eles são obrigatórios a cada um ano e meio ou dois anos e meio, conforme a idade do condutor.


Nas eleições de 2018, Leal recebeu R$ 198,5 mil de três sócios do Labet, maior empresa desse mercado. As doações representaram 20% do que o ex-chefe do novo diretor-geral recebeu de pessoas físicas para a campanha (R$ 967,6 mil) – o restante (R$ 950 mil) veio do fundo partidário, verba de origem pública.


No ano passado, o Labet foi o responsável por cerca de 35% dos exames toxicológicos no país. A estimativa, com base na quantidade de testes realizada, é de que os 11 laboratórios credenciados para a atividade tenham faturado R$ 385 milhões em 2018.


Além de licenciar e fiscalizar in loco essas empresas, cabe ao Denatran analisar as auditorias de qualidade apresentadas por elas anualmente e aplicar sanções por descumprimento de regras, que vão da advertência à revogação do credenciamento.


Dentro da estrutura do órgão, a maioria dessas atividades cabe à Coordenação de Educação, para a qual foi nomeado Francisco Garonce (que já exerceu a função anteriormente). Ele é um dos apresentadores do programa Brasil Caminhoneiro, exibido no SBT e na TV Aparecida, que tinha patrocínio do Labet até o ano passado.


A Labet tem pleiteado junto ao governo mudanças na fiscalização para que a maioria dos motoristas cumpra efetivamente a obrigação de fazer os exames a cada dois anos e meio, e não só no momento da habilitação e da renovação da carteira (a cada cinco anos), o que ajudaria a turbinar os ganhos da empresa.


Na segunda (11), Márcio Liberbaum -um dos sócios do laboratório e doador de Leal- teve agenda no órgão para tratar do assunto. “[A fiscalização] Tem uma repercussão para o trânsito, tem uma repercussão de negócio legítima, porque eu me dimensionei para fazer o dobro [de exames] do que eu estou fazendo. Claro que tem um pleito. Esse é um dinheiro bom, porque salva vidas”, disse à reportagem.


Ele sustenta que não sugeriu nomes específicos para o Denatran, mas que requereu a integrantes do Legislativo e pessoas próximas ao presidente “alguém forte” para comandar o órgão. “Pedi para todo mundo no Congresso, pedi para o pessoal ligado ao Bolsonaro: ‘vamos botar alguém forte ali'”, afirma.


O presidente Jair Bolsonaro fez sua campanha prometendo blindar os órgãos do Executivo das nomeações políticas e empresariais.


Questionado, o Ministério da Infraestrutura, ao qual o Denatran está subordinado, informou que o diretor-geral foi escolhido por critérios técnicos. Dias atua na área de trânsito há cerca de 25 anos. Além de inspetor da Polícia Rodoviária Federal (PRF), foi conselheiro titular do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) entre 2011 e 2015 e é pós-graduado em planejamento e gestão de trânsito.


O deputado Hugo Leal -que tem histórico de boas relações com Bolsonaro- nega ter influenciado a nomeação. Ele alega que Dias foi chamado em função do currículo e porque conhece da Câmara o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, que o procurou para sondar sobre o assessor.


“O que teve foi a pergunta, do ministro, se ele estaria disponível. Ainda brinquei com ele: vou perturbá-lo muito. Passou uma semana, ele [Dias] recebeu um comunicado”, contou.


Em março do ano passado, o Ministério Público do Rio de Janeiro ajuizou ação civil pública contra o deputado e outros quatro ex-presidentes do Detran-RJ por envolvimento num suposto esquema de fraudes em licitações para contratar mão de obra terceirizada. Segundo a Promotoria, havia ajuste prévio entre empresas para definir a vencedora.


Os ex-chefes do órgão teriam compactuado com a ilicitudes ao não impedir que elas ocorressem.


A ação pede que o deputado seja um dos condenados a ressarcir danos ao erário.


Em outubro, a Justiça mandou bloquear seus bens em caráter liminar. Ele não pode, no entanto, sofrer as sanções da lei de improbidade administrativa, pois, como deixou o cargo mais de cinco anos antes de ser acionado na Justiça, essas punições prescreveram.


OUTRO LADO


O Ministério da Infraestrutura informou que a indicação do diretor-geral obedeceu a critérios “estritamente técnicos”. “As relações com todas as autoridades e instituições, públicas ou privadas, acontecem dentro dos princípios do bom exercício da administração pública. Não houve indicação política.”


Hugo Leal afirmou que seu ex-assessor é um excelente técnico, que conhece o tema, diferentemente de outros quadros que já chefiaram o Denatran.


Sobre as doações de sócios do Labet, o congressista disse que, por sua trajetória e compromissos na área do trânsito seguro, “sempre recebeu diversas manifestações de apoio”. “Os referidos apoios foram realizados por vontade própria e espontaneamente por meio de doações legais, dentro dos limites permitidos para sua campanha eleitoral.”


Leal alegou que não há conflito de interesses no caso, pois “não está ocupando nenhum cargo no Executivo e muito menos fez qualquer indicação”


Sobre a ação civil pública, ele afirmou ter deixado a chefia do Detran-RJ em 2005 e que é “um absurdo” o ajuizamento de uma ação para questionar seus atos 13 anos depois. O deputado argumentou que, em sua gestão, chegou a fazer um termo de ajustamento de conduta para readequar as contratações terceirizadas no órgão.


Márcio Liberbaum alegou que nunca aceitou indicar nomes para o governo. “Não quero compromisso com pessoas cuja responsabilidade por elas eu não posso assumir. O ser humano é frágil”, justificou.


Ele disse que os sócios do Labet apoiaram a campanha do deputado por ser um dos poucos que são “referência temática na área de trânsito” e por esperar que ele continue na Comissão de Viação e Transportes “brigando pela qualidade da segurança viária brasileira”.


Questionado se as doações foram com interesse em contrapartidas, respondeu: “Com interesse. Vou jogar dinheiro fora? Qual é o meu interesse? Diminuir o meu risco jurídico, da segurança jurídica em que eu incorreria, em não ter um parlamentar sério e comprometido com a segurança viária”.


Francisco Garonce informou que apresenta apenas um quadro do Brasil Caminhoneiro e que recebe como uma espécie de freelancer. Ele afirmou que o laboratório patrocinou esse quadro até o segundo trimestre de 2018 e que o apoiador agora é uma fabricante de pneus. “Se o pessoal [da produtora do programa] dissesse que o Labet vai voltar a patrocinar, eu não aceitaria.”


Garonce afirmou ter submetido à CGU (Controladoria-Geral da União) uma consulta sobre eventual conflito de interesse ao acumular as funções de coordenador no Denatran e apresentador de TV. Adiantou que só voltará às atividades no programa “caso seja confirmada a inexistência de conflito”. Explicou ainda que o programa está sendo reprisado desde dezembro e que ainda não gravou em 2019.