Fabiana Soares compete em uma cadeira de rodas e atende a pacientes do novo coronavírus em pé. Não se trata de um milagre, mas de uma condição. Nascida com encurtamento do fêmur, ela tem que lutar sentada por causa das regras no esgrima paralímpico. Para os plantões como fisioterapeuta no CTI do Hospital de Infectologia de São Sebastião, no Rio de Janeiro, controla as dores para ter mais agilidade nos procedimentos médicos.

Ela anda com certa dificuldade, pois são 11 centímetros de diferença de uma perna para outra. No CTI, onde todos estão paramentados dos pés à cabeça, esse é o detalhe que fica para os pacientes. “Perguntam: ‘quem é aquela menina que manca? Aí sabem que sou eu”, contou rindo.

Foi assim que Pamela Sarmento identificou Fabiana e conseguiu mandar uma mensagem de agradecimento. Pamela foi internada grávida, com coronavírus, e precisou fazer uma cesárea de emergência. Passou duas semanas entubada, ficou em estado grave no CTI. Quando melhorou, foi remanejada para a enfermaria, mas pegou pneumonia. Passou 35 dias no hospital. Perdeu o primeiro mês de vida da filha, que nasceu sem a doença.

Uns dias depois de receber alta, Pamela descobriu o nome da médica que mancava e a adicionou no Facebook. “Você foi uma das pessoas que Deus escolheu para estar lá cuidando de mim. Desculpe a invasão, mas a primeira vez que eu levantei daquele leito foi com sua ajuda e só queria que soubesse que aquele momento marcou a minha vida”, escreveu em trecho do agradecimento. “Obrigada por ter escolhido sua profissão por amor. Obrigada por depositar tanto carinho naquilo que faz”.

Fabiana se emociona ao relembrar. “Foi um agradecimento super bonito. Porque o dia que estava lá coloquei ela sentada e depois em pé. Ela estava muito tempo deitada e isso marcou muito ela. Ela me mandou também o vídeo do momento que encontrou a menininha pela primeira vez. Super lindo, emocionante”.

São histórias como essa que motivam Fabiana a conciliar uma rotina bastante diversificada. Ela vive em Petrópolis, onde treina esgrima e também administra uma pequena pizzaria. Ela e a amiga com que divide a casa são sócias no negócio que montaram na garagem. Fabiana coloca a mão na massa e a parceira atende as mesas de quinta-feira a domingo à noite.

Às terças-feiras ela viaja ao Rio de Janeiro e dá plantão de 24 horas como fisioterapeuta. O CTI é pequeno, com capacidade para apenas sete pacientes. Desde março está sempre cheio. A função dela é cuidar da parte respiratória, manejar os respiradores e definir junto aos médicos as condutas que serão tomadas.

“Até agora não tenho do que reclamar. Trabalho em um hospital público e posso dizer que nunca faltou equipamento para nós e nunca faltou qualquer coisa aos pacientes”, disse. Isso não significa, no entanto, que o trabalho seja fácil. “Tenho visto muita gente morrer. Seja nova seja velha, estão morrendo. Perdemos aqui uma menina de 19 anos, um rapaz de 38. Muitos idosos…”, contou.

Fabiana lembrou também dos colegas de profissão. Uma enfermeira precisou ir para o CTI e um médico que trabalhava junto com ela morreu. “Ele tinha 41 anos, trabalhava comigo, dividíamos o quarto durante o plantão”.

O médico ficou internado em um hospital particular. O que impressionou Fabiana é que ele estava evoluindo, ficou com o pulmão plenamente recuperado, mas depois teve uma parada cardíaca. “É muito difícil. A gente não sabe direito o que está acontecendo. Faltam médicos intensivistas para tratar dessa doença. Vejo que tem muito médico que está sendo deslocado para essa função sem saber exercer direito, para cobrir um buraco. É muito complicado”.

VIDA DE ATLETA PARALÍMPICA – Nos demais dias da semana, na parte da manhã e da tarde, sua preocupação é manter a forma de olho nos Jogos Paralímpicos de Tóquio-2020 e, claro, não cair em tentação com as pizzas. “Está complicado, viu?”. O principal evento esportivo do mundo foi remarcado para acontecer em julho de 2021. Fabiana está em 20.º no ranking do sabre/florete, a quatro pontos da vaga.

Quando em março as competições classificatórias foram canceladas, Fabiana ficou desesperada pois temia que deixaria de ir a Paralimpíada por quatro pontos. Mas quando adiaram também os Jogos ela ficou mais tranquila. “Primeiro, fiquei arrasada. Depois, fiquei mais tranquila. Mas foi engraçado porque o tempo mantive sempre a esperança de ainda conseguir a vaga”.

A disputa da vaga paralímpica no esgrima é feita por continente. Para ir a Tóquio precisa estar entre os 25 melhores do mundo e ser a melhor das Américas. Fabiana está em 20.º, mas a quatro pontos de uma canadense.

A DESCOBERTA DO ESGRIMA – A ideia de praticar esgrima surgiu por causa dos Jogos Paralímpicos do Rio-2016. Ela viu o evento sendo preparado no Brasil e pensou que poderia também estar lá. Fabiana sempre praticou esportes, foi goleira de hóquei na infância. Em Petrópolis (RJ), visitou o Clube Magnólia e notou um grupo de esgrimistas convencionais treinando. “Descobri que havia também o paralímpico e fui lá. O técnico estranhou, pois nunca havia ensinado alguém em uma cadeira de rodas. Expliquei que existia, que funcionava, ele ficou meio ressabiado, mas aceitou o desafio”.

Era por volta de 2015. Para ter certeza de que era aquilo mesmo, foi assistir ao Campeonato Brasileiro em São Paulo. “Achei que as pessoas não eram muito boas, olhando de fora parecia fácil”, contou dando risada. O passo seguinte foi comprar uma cadeira para a modalidade que custa quase R$ 5 mil. Fabiana fez uma vaquinha na internet, e garantiu o dinheiro para a entrada. Depois, duas pessoas de Petrópolis ajudaram a pagar o restante das parcelas.

Problema resolvido, em 2016 entrou para as disputas. O primeiro campeonato foi em Valinhos (SP). “Tomei um couro de todo mundo”, lembrou dando ainda mais risada. A derrota a colocou no lugar, fez com que treinasse mais e levasse mais a sério as disputas. A primeira conquista veio no Brasileiro de 2017, no florete. No ano seguinte, representou pela primeira vez o Brasil no Regional das Américas, no Canadá, e garantiu a medalha de bronze na espada. Em 2019, fez grande temporada faturando o ouro em duas Copas do Brasil e um Campeonato Brasileiro.

Os bons resultados deram o direito a receber um salário mínimo do programa Bolsa Atleta. Além da pizzaria e do trabalho no hospital, conta ainda com a ajuda de duas pessoas para complementar a renda. Cada uma colabora com R$ 100. Uma delas decidiu ajudar de maneira curiosa. Fabiana voltava de metrô de uma competição no Rio. Uma senhora a viu com a medalha em uma cadeira de rodas e puxou conversa. “Ela gostou da minha história e desde então me ajuda todo mês. Achei engraçado. Um monte de pessoas que você conhece nem aí para você e vem uma desconhecida e decidi ajudar. E assim seguimos”.