SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A história de sete prostitutas que, chamadas para escrever sobre uma cafetina, concluíram “que ela tinha que ser canonizada” é uma das preferidas do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL).

Foi com essa fábula que, em discurso de outubro de 2014 na Câmara, ele se referiu ao relatório produzido pela CNV (Comissão Nacional da Verdade), criada dois anos antes, no governo de Dilma Rousseff (PT), para apurar crimes cometidos pelo Estado entre 1946 e 1988 e especialmente durante a ditadura militar.

Quando fala de “prostitutas”, Bolsonaro se refere aos ex-integrantes da CNV: o ex-procurador-geral Claudio Fonteles —substituído pelo advogado Pedro Dallari em 2013—; o advogado e ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Gilson Dipp; os advogados José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho e Rosa Maria Cardoso da Cunha; a psicanalista Maria Rita Kehl e o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro.

Quinhentas notas taquigráficas referentes aos discursos de Bolsonaro em plenário desde 2010 apontam a virulência contra a comissão: ele inflou o discurso antipetista não apenas em contraposição à corrupção ou a ideias de combate ao racismo e à homofobia. Dos 500 discursos, 56 fazem oposição à criação da CNV.

Em 2011, na iminência da votação de lei que criaria a comissão, o deputado fez um apelo: “O que vocês têm a ganhar colocando à execração pública as Forças Armadas?”.

A conclusão das investigações responsabilizaria 377 agentes civis e militares por “graves violações aos direitos humanos”. Ao reconhecer 434 mortos pela repressão —210 desaparecidos—, o texto classifica a atuação como “crimes contra a humanidade”.

Entre os torturados e mortos está Vladimir Herzog, que dirigiu o departamento de jornalismo da TV Cultura. A CNV concluiu que Herzog foi morto após sessão de tortura nas dependências do Doi-Codi, em 1975. “Suicídio acontece”, disse Bolsonaro em julho sobre o caso, à Rede TV!.

Quando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra morreu, em 2015, o capitão reformado defendeu que seu herói “enfrentou maus brasileiros, verdadeiros doentes mentais que tentaram aqui implantar a ditadura do proletariado”.

Ustra comandou o Doi-Codi e redigiu uma apostila que consolidou uma metodologia de interrogatórios violentos. “O Exército assumiu a ordem de combater o terrorismo sob as quais cumpri todas as ordens legais”, disse Ustra à CNV.

Tortura não era prevista por lei nem mesmo na ditadura.

A retórica de Bolsonaro em prol de torturadores em nenhum momento estabelece diferenças entre crimes cometidos por cidadãos e pelo Estado. “Torturar e matar pessoas sob sua custódia [do Estado] é crime de lesa-humanidade”, diz Maria Rita Kehl. “Um militante que assalta um banco, dá um tiro e mata um guarda, isso é horrível, mas é um crime comum”, compara.

“Os militares saíram da ditadura com uma imagem muito negativa. Bolsonaro propicia agora que retomem suas vozes na batalha relativa à memória”, diz a historiadora Cecília Riquino Heredia, doutoranda da USP que estuda os resultados e os efeitos da CNV.

Para tanto, afirma Cecília, o deputado retoma retórica contraditória. “Na ditadura, eles se diziam a favor da democracia, mas tinham um regime antidemocrático. A desculpa era o inimigo, o comunismo. Sequestram a democracia com o discurso de que a estavam protegendo. Por isso, é importante voltar a ter esse inimigo comum agora”.

A campanha de Bolsonaro teve eco na população, e hoje Kehl avalia um efeito paradoxal no papel da CNV. “Mais de uma vez, fui parada na rua, e perguntavam: ‘Não vão investigar o outro lado?’. Eu dizia: ‘As mortes produzidas pelos militantes de esquerda já foram investigadas e divulgadas. Os autores foram presos, torturados e alguns foram mortos. A gente trabalhou para investigar o lado que os militares esconderam'”, conta.

Em agosto de 2016, Bolsonaro atribuiu a decisão de se candidatar à Presidência a incômodo crescente na classe.

Em março de 2014, quase 23 anos após o fim da União Soviética, sugere que uma articulação militar entre países latinos poderia ser eficiente ainda hoje: “Chegará o momento em que um novo 31 de março, ou uma nova Operação Condor, não serão suficientes para impedir o Brasil e a América Latina de serem lançados nos braços do comunismo.”

Em setembro daquele ano, debochou da jornalista Miriam Leitão pelo fato de ela ter relembrado, em entrevista ao jornal O Globo, a sessão de tortura pela qual passou: “Miriam Leitão estava chorando, esses dias, na imprensa, porque foi torturada: ‘Botaram no meu quarto uma cobra’. Eu tenho pena da cobra!”, disse.

Naquele mês, Bolsonaro investiu contra um pedido da CNV para que o general Enzo Peri fosse destituído do comando do Exército —ele oficiara quartéis proibindo colaborações com as investigações.