Com um voto denso que tomou toda a sessão de julgamento nesta quinta-feira, 31, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucionais na política ambiental do governo Jair Bolsonaro (PL).

A sessão de hoje foi interrompida sem que a magistrada tivesse finalizado a leitura do seu voto, que será retomado na semana que vem. A relatora de seis das sete ações da pauta verde no STF enfatizou que a Amazônia pode estar à beira do “ponto de não retorno”, quando a devastação chega a um estágio irreversível, causado pela “ecocriminalidade” e a omissão estatal, como acusam os partidos de oposição nos processos em julgamento.

“A inércia, a atuação insuficiente, ou contrária aos deveres constitucionais, macula de inconstitucionalidade a atuação do estado, impondo a intervenção judicial para restabelecer a eficácia dos direitos constitucionais, a dignidade ambiental, os direitos fundamentais dos indivíduos das presentes e futuras gerações”, afirmou a ministra, justificando a necessidade de o Supremo agir em uma área de responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo.

As declarações foram feitas em meio a uma manifestação pró-ditadura militar realizada por apoiadores de Bolsonaro em frente ao prédio do Supremo. Dentro da Corte, Cármen Lúcia destacava a importância de reformular políticas públicas lenientes com a violação do Meio Ambiente: “Nós temos um ecossistema garantido na Constituição e uma ecocriminalidade que não pode ser mantida e precisa ser devidamente restringida, impedida, embaraçada e punida depois do devido processo legal, com o cumprimento da lei”.

Essa foi a segunda sessão de julgamento das ações contra os atos e omissões do governo nas áreas ambiental e climática. Na pauta de hoje, foram analisadas conjuntamente duas ações que tratam da inércia e ineficiência do governo na Amazônia. Logo na abertura para votação, Cármen Lúcia citou as declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o Brasil seria um “pequeno transgressor” da legislação ambiental e um “pequeno poluidor” à nível global. Antes de Guedes, o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já havia falado em “passar a boiada”, flexibilizando a fiscalização na Amazônia legal. Em resposta, a ministra afirmou que a transgressão do Estado brasileiro foi confessada por falas oficiosas de uma autoridade oficial.

Diante do Estado de coisas inconstitucionais no qual o País se encontraria, a ministra-relatora afirmou que o Poder Judiciário deve agir frente à “cupinização” do meio ambiente e da democracia. “O que são esses cupins? O cupim do autoritarismo, do populismo, de interesses pessoais, da ineficiência administrativa. Tudo isso a construir um quadro que faz com que não se tenha o cumprimento objetivo garantido, de conteúdo, da matéria constitucional devidamente assegurada”, explicou Cármen Lúcia.

A ministra destacou ainda que, ao tratar de questões ambientais, não é incomum “que o Estado faça de conta que tem um aparato burocrático e administrativo”, gerando um verdadeiro “teatro ambiental administrativo”. Segundo a magistrada, esse cenário teatral se explica quando os governos mantêm estruturas de fiscalização que não funcionam.

De acordo com documento publicado pela ONG Conectas, que foi admitida como amicus curi deste julgamento, o Brasil está entre os países do mundo com o maior número de leis ambientais e climáticas. Ainda assim, o desmatamento na Amazônia legal bateu recordes durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro – o ápice foi atingido em 2021, quando quase 12 mil km² foram desmatados, de acordo com o INPE. O argumento dos impetrantes das ações em julgamento é que a paralisação de programas de combate ao desmatamento previstos – como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, PPCDAm – estaria impedindo que políticas de Estado se concretizassem em ações.

Em seu voto como relatora, a ministra concordou ao argumentar que a precariedade consciente dos órgãos de proteção ambiental ferem “o dever constitucional de agir eficiente, que é obrigação estatal e da sociedade para preservar, proteger e, se for o caso, restaurar as condições do meio ambiente”.

As declarações foram dadas a partir das provocações de partidos da oposição, que apontaram supostos atos omissivos e comissivos dos órgãos de governo em relação à execução de plano efetivo de prevenção ao desmatamento na Amazônia, assim como do presidente da República e do ministro do Meio Ambiente em coibir o avanço do desmatamento na floresta.

A ministra também rebate o argumento do presidente, cuja justificativa para a paralisação dos fundos foi a suposta defesa da soberania nacional, Carmen Lúcia pontua que sobre a Amazônia “exerce-se a soberania do povo brasileiro”, e explica: “a soberania do povo tem fator de responsabilidade e não fator de privilégio e exclusividade de uso. Não está se discutindo soberania, mas como o povo soberano do Brasil cuida dessa floresta porque ele tem os deveres de cuidado da condição climática do planeta, a partir da proteção e da preservação dessa área”, afirmou.

A ministra argumenta que a “emissão de carbono” – metade das emissões brasileiras de gases estufa derivam do desmatamento – afeta não apenas o Brasil, mas todo o mundo. “O seu cuidado soberano [da floresta Amazônica] pelo povo brasileiro corresponde, portanto, a um dever que todos nós temos como parte do povo brasileirocom toda humanidade pelo impacto que a sua preservação ou devastação representa na sobrevivência de todos os seres do planeta”, completou.

Antes do voto da ministra, o procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou a manifestação do Ministério Público Federal (MPF). O chefe da PGR comentou as declarações de Cármen Lúcia na sessão anterior, quando ela ironizou o fato dele ter se manifestado contra uma ação proposta pela instituição durante a gestão da ex-procuradora-geral Raquel Dodge. Para Aras, as divergências fazem parte da troca de comando.

Na questão ambiental, Aras se restringiu a questões formais: destacou a importância da autocontenção do Supremo em relação ao Congresso e Executivo, “sob pena de o Judiciário substituir o legislador nas escolhas políticas”. O procurador-geral da República disse ainda que “proteger e preservar a Amazônia é uma questão fundamental e dever do Estado”, mas “questões em torno do meio ambiente são de alta especialidade técnica e comportam diversas visões políticas” .