Não, o mundo não vai acabar agora, nem em um futuro próximo, embora muitos se esforcem para isso. Em tempos ameaçadores, como em pandemias, existe a tendência de “viver como se não houvesse amanhã”, fazer dívidas, descuidar da saúde, esquecer medidas de prudência e disciplina usuais. A sensação de que algo terrível pode acontecer a qualquer momento leva à crença de que tudo irá dissolver-se e que é preciso viver rápida e intensamente antes disso.

As drogas “lícitas” como álcool e tabaco são usadas sem nenhuma parcimônia, a alimentação deixa de ser saudável os exercícios físicos básicos são abandonados.

Os mais jovens, talvez na ilusão de serem imunes à peste, talvez movidos pelo apelo hormonal da idade, lotam bares, parques e praias sem o menor cuidado com distanciamentos ou uso de máscaras; e por terem vivido menos tempo são os que teriam mais tempo de vida a perder, se o pior acontecesse.

É como se uma imensa injustiça tivesse ocorrido e fosse necessário desafiar a morte para repará-la.

Atitudes de desafio a regras impostas podem ser o último recurso de afirmação da liberdade: os judeus que se recusaram a usar a infame estrela amarela de Davi imposta pelo nazismo e foram assassinados são símbolos de resistência à barbárie; os negros americanos e sul africanos que não aceitaram as leis racistas tiveram parte fundamental no combate à discriminação racial em seus países; a “resistência pacífica” de Gandhi definiu a independência da Índia do império britânico; as feministas que, desde as “sufragistas” do início do século vinte, enfrentaram e ainda enfrentam a violência explícita do machismo contribuem para a construção da igualdade de oportunidades independente de gênero; os que se negaram a acatar a censura de nossa ditadura militar. São, estes e muitos outros, os exemplos de resistência à tirania e à injustiça.

Há, no entanto, um tipo de desafio que é pueril, e pode ser perigoso e antissocial, como as manifestações de voluntarismo dos motociclistas que se recusam a usar capacete de proteção e dos motoristas que usam seus veículos como verdadeiras armas. E atualmente dos cidadãos que não usam máscara em lugares públicos, justificando a sandice com o suposto direito que teriam de arriscar a própria vida em defesa de uma ideia, o que em um universo patafísico poderia proceder desde que a única vida arriscada fosse a do “herói”, mas nesta atitude são ameaçadas todas as pessoas próximas a ele. Ademais, o custo de seus possíveis internamentos e tratamentos tende a recair, através de impostos, ao erário público, e toda a comunidade pagará por sua imprudência.

O direito individual e o coletivo nem sempre estão próximos, muitas vezes aceitar um é recusar o outro, como no dilema de segurança e liberdade: para termos total segurança é preciso renunciar a boa parte da liberdade que temos no ir-e-vir, nos lugares em que podemos estar, nos comportamentos de risco, na diversão que podemos usufruir e assim por diante. Então, estabelecer o limite do quanto de segurança ou liberdade aceitamos é sempre delicado e muda muito através dos anos, quando deixamos de nos sentir imortais como aqueles muito jovens, aparentemente optamos por mais segurança.

No entanto, é compreensível que muitos escolham mais liberdade em detrimento da segurança: nossa sociedade cultua os corajosos, que não se deixam intimidar, mesmo ao preço do verdadeiro exercício da cidadania, que implica na ciência de que a ousadia de um pode acarretar consequências para muitos que não realizaram esta escolha.

A liberdade de nossa individualidade pode prejudicar a segurança da comunidade, e a exata medida entre um e outro não depende apenas da idade, mas também de nossa formação intelectual e moral, quais valores norteiam nossa vida, assim como a dependência daqueles a quem amamos.

Um processo educativo eficiente pode orientar nossos jovens nestes dilemas e decisões, em que muitas vezes o caminho individual impacta toda a sociedade.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.