SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os 200 anos de “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”, obra que inaugurou a ficção científica na literatura, foram lembrados de forma bastante modesta no meio cultural.

O principal filme ligado à história a chegar ao circuito em 2018, “Mary Shelley” não escapa do clima de certa frustração entre os entusiastas da criatura trazida à vida pelo médico ítalo-suíço Victor Frankenstein.

Pena, pois as premissas eram ótimas. A começar pela personagem-título, Mary Wollstonecraft Shelley, cuja história de agruras desembocou na gestação literária do monstro que só tem no conde Drácula par no imaginário fantástico mundial.

Foram escaladas para contar sua história com uma pegada feminista Haifaa al-Mansour, a primeira cineasta a filmar na sua Arábia Saudita natal (o celebrado “O Sonho de Wadjda”, de 2012), e a roteirista australiana Emma Jensen.

A isso somam-se uma excelente ambientação evocando o gótico, com o “ano sem verão” europeu de 1816 (cortesia de uma erupção vulcânica na Indonésia) decantado numa paleta de cinzas e marrons, e vários bons atores –a começar por Elle Fanning, transportando angústia delicadamente ao papel principal.

Fanning conduz a saga de Mary Shelley de filha de uma importante feminista “avant la lettre”, que morreu no seu parto, a autora de um clássico e contestadora das regras sociais machistas vigentes.

Mary morava com o pai, um importante editor e livreiro, e acabou mandada para a lúgubre Escócia para ficar longe da madrasta.

Conhece e se apaixona, aos 16, pelo poeta Percy Shelley, cinco anos mais velho. Ele é um escroque romântico típico, que omite ter mulher e filhos à pretendida.

A dança dos dois personagens, que acabam casados, é o ponto mais baixo do filme, dada a atuação exagerada de Douglas Booth como Shelley e o tom de folhetim da trama: escândalos familiares, fuga de casa, dramalhões.

Isso não é ajudado pelos atores que orbitam Fanning, com exceção de Bel Powley, deliciosamente lasciva e frágil como a meia-irmã de Mary, Claire. Ela se joga nos braços de outro clichê da época, lorde Byron, vivido de forma histriônica por Tom Sturridge.

Ele será, a certa altura, o anfitrião de um dos grandes eventos culturais da história ocidental moderna: a temporada que o casal Shelley, Claire, Byron e o médico John Polidori (Ben Hardy) ficaram trancados numa vila à beira do lago Genebra em 1818.

Com o clima péssimo e sombrio, além da luxúria e da inebriamento de parte do grupo, os presentes se entretêm lendo contos de fantasmas –uma paixão de Mary.

Numa noite, Byron então lança o desafio: quem conseguiria criar a mais assustadora história de terror? Desse evento nasceram tanto “Frankenstein” quanto “O Vampiro”, de Polidori, o primeiro romance moderno do tema, antecessor de “Drácula” em 79 anos.

Os eventos são descritos burocraticamente. Na mão de um diretor inventivo como o britânico Ken Russel, só esse episódio rendeu um filme lisérgico, “Gothic” (1986). Aqui, apenas o sofrimento de Mary entre os homens disfuncionais que a cercam interessa.

A opção é lógica e condizente com a proposta do filme, mas também uma armadilha. Mary tem sua capacidade intelectual de certa forma encerrada na persona “mulher sofrida”, enquanto “Frankenstein” traz um atualíssimo escopo de especulação filosófica sobre o papel da ciência e os decorrentes conflitos éticos.

Não que as barreiras às mulheres não fossem ainda maiores do que as atuais. Sem encontrar editor, o texto só veio à luz quando o renomado Shelley escreveu o prefácio e a autoria permaneceu anônima.

Isso deu curso à versão de que ele seria o real criador da obra. Foram precisos anos para o próprio Shelley e o pai de Mary mudassem isso, revelando a verdade.

Com tanta matéria-prima de qualidade à mão, Al-Mansour poderia ter montado sua criatura com um pouco mais de criatividade. E usado um pouco mais de faíscas na hora de trazê-la à vida.

‘Mary Shelley’

Reino Unido, Luxemburgo, EUA, 2017.

Direção: Haifaa Al-Mansour.

Elenco: Ben Hardy, Elle Fanning, Bel Powley.

Disponível na Netflix

Avaliação: Regular