Não havia ninguém na aldeia. O roçado estava vazio, assim como as casas. O coronel Bruno Henrique de Avelar Francisco imaginou um ataque da Frente Patriótica de Ruanda (FPR). O brasileiro, um observador militar das Nações Unidas, estava com militares do país em uma viatura, que logo levantaram a guarda. A vila havia sido atacada. Os rebeldes, sobretudo da etnia tutsi, combatiam o governo dos hutus de Juvenal Habyarimana. Eram apoiados por Uganda.

Bruno e os colegas estavam ali para verificar se o fim do fluxo de armas para FPR, vinda de seus aliados do outro lado da fronteira, fora interrompido. Naquele dia, a patrulha localizou, em uma colina próxima, a chave para o mistério. Lá estavam crianças e mulheres da aldeia cercados por alguns homens enquanto os guerreiros preparavam lanças e machados. Ia começar a caçada. O homem mais velho da vila – o mzee, na língua suaíli – aguardava tudo terminar.

Bruno sentiu-se “em um filme de Tarzan”. O militar resolveu perguntar o que estava acontecendo. “Leão velho”, disse um dos guardas ruandeses.

Quando o felino envelhece, já não é capaz de capturar antílopes e gazelas. Procura caças mais frágeis e entre elas está o homem. O animal devorara um morador da vila, que agora se organizava para dar um fim à ameaça. O leão acabou capturado e seu corpo, conduzido até os pés do mzee. A caçada só se concluiu quando o ancião exerceu a prerrogativa ancestral: era dele o direito de degustar os testículos da fera. E assim foi.

Aquela dia nunca mais abandonaria a memória do oficial devoto de Nossa Senhora. Não só pela caça ao leão, mas porque, depois, escaparia da morte. Com a volta à normalidade na aldeia, Bruno e colegas retornaram à patrulha. O coronel era o único mzungu, homem branco, do grupo. Seguiram para outra aldeia, onde acharam um caché, um esconderijo de armas da FPR.

O conflito entre o exército do país e os rebeldes ainda não havia detonado o genocídio dos tutsis – e dos hutus moderados – por radicais hutus, muitos dos quais da milícia Interahamwe. No esconderijo guerrilheiro havia um lança-rojão RPG. Bruno apanhou o bloco e começou a anotar. Os apontamentos estariam no relatório ao comandante da missão, o general canadense Roméo Dallaire. “Só depois soube que se tivesse encostado a mão em qualquer arma ou recolhido algo, teria sido atacado pelos rebeldes que nos vigiavam.”

Bruno e outros 12 militares brasileiros chegaram à missão da Unomur em julho de 1993 e se estabeleceram na fronteira entre Uganda e Ruanda. Foi nessa região que Bruno e seus colegas foram surpreendidos pelo atentado que matou o presidente de Ruanda Juvénal Habyarimana, em abril de 1994, iniciando a espiral de terror que levou ao extermínio de 11% da população do país – 800 mil tutsis morreram.

Os militares recebiam relatos esparsos da violência, sem imaginar sua magnitude. Foi em um sobrevoo do Rio Kagera que Bruno vislumbrou o terror. As águas estavam coalhadas de corpos, quase todos de vítimas de armas brancas. “Primeiro chegaram os homens, depois as mulheres. Todos mutilados. Por fim, as crianças, que foram afogadas.”

Bruno viu os refugiados lotarem um campo sob a proteção da ONU. Lá conheceu uma freira brasileira e um padre francês, poupados pela milícia em razão de serem estrangeiros, não sem antes terem sido obrigados a testemunhar os assassinatos de freiras ruandesas enterradas vivas pela milícia hutu. Bruno sentia-se só diante da desumanidade e dos crimes que testemunhara.

O oficial voltou ao Brasil. Comandou o Colégio Militar no Rio e passou para a reserva em 2014. “A minha vida se modificou totalmente depois disso. Hoje em dia sou incapaz de deixar um grão de arroz no meu prato. Tudo o que me sirvo, eu consumo. São detalhes simples que a gente não se dá conta até ver o valor das pequenas coisas.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.