Franklin de Freitas – Freitas (PT): eleito com 5.097 votos

O advogado Renato Freitas (PT), 37 anos, conhece como poucos a realidade da população negra periférica da Grande Curitiba. Nascido em Sorocaba (SP), filho de pais que migraram do sertão nordestino, veio morar na região metropolitana da Capital paranaense ainda recém-nascido. De lá passou por Almirante Tamandaré, Piraquara, Colombo, muitas vezes vivendo com a família em ocupações irregulares, e ainda com o pai encarcerado. 

Mesmo diante de todas as dificuldades, fez de tudo para conseguir estudar – chegando a vir a pé de Colombo para o Centro da Capital para fazer o curso pré-vestibular. Em 2004, filiou-se ao PT, mas depois migrou para o então novo partido de esquerda em formação, o PSOL. Acabou se decepcionando com o perfil elitista da legenda, depois de ter sido o candidato a vereador mais votado do partido, em 2016, com 3.500 votos, e voltou ao PT, pelo qual concorreu a deputado estadual em 2018, quando foi vítima de violência policial. E se elegeu para a Câmara no ano passado, com 5.097 votos. Agora, ele conta em entrevista o Bem Paraná, como o movimento hip hop e o rap o despertaram para a política e como pretende usar o espaço conquistado nas urnas para dar visibilidade aos setores marginalizados da cidade.
Bem Paraná – Onde o senhor nasceu e quando veio para Curitiba?
Renato Freitas – Nasci em Sorocaba. Vim para Curitiba antes de ser registrado, recém-nascido. Fui registrado no cartório do Barreirinha, do lado do presídio do Ahú. No início moramos em Almirante Tamandaré. Minha mãe. Meu pai estava sem a liberdade. E depois em Piraquara, do lado do complexo penitenciário, na Vila Macedo. Lá eu passei toda a minha infância. Saí de lá com 15 anos.

BP – Como começou o seu interesse pela política?
Freitas – Depende da definição de política. De acordo com a minha definição que é o interesse pela coisa pública, ou pela transformação da realidade a partir de uma atuação coletiva, organizada e consciente, meu início na política foi também meu início na cultura hip hop. No rap. A cultura hip hop teve o auge da popularidade nos anos 90. Sou de 83, quando tinha 10, 11 anos, ouvi o disco do Racionais MC´s de 94, o “Raio-X do Brasil”, já tinha essa proposta política de visão coletiva da realidade brasileira, consciente, e que apontava os caminhos não só para transformação, mas o diagnóstico de uma sociedade adoecida pelo racismo, pela miséria, pela desigualdade, violência. E eu fui parte desse movimento desde muito cedo porque foi o primeiro lugar de pertencimento para mim como um ser social. Para mim foi um divisor de águas.

BP – E quando o senhor decidiu entrar na política institucional, partidária?
Freitas – Eu passei por diversos bairros, sai de Piraquara para Pinhais, Colombo, depois Curitiba. Mas ainda quando morava em Colombo, trabalhava como empacotador de mercado, depois repositor, tinha abandonado os estudos na sexta série. Daí eu fiz Ceebja (Educação de jovens e adultos). Terminei o ensino fundamental, fui na correria para terminar o ensino médio. E nesses trabalhos que eu tinha não tinha como conciliar com os estudos. Eram trabalhos lugares longe e uma jornada longa, além de 9 horas, tinha 3, 3 horas de horas extras, principalmente quando eu trabalhava em uma sorveteria em shopping. Fiz um acordo e deixei o emprego e fui fazer cursinho. No Largo da Ordem que era um curso mais em conta. Peguei meu seguro desemprego. Vinha a pé de Colombo para o Centro. Não fiz o cursinho até o final porque sofri um ato de discriminação. Daí eu estudei sozinho mesmo, na biblioteca pública. No final de 2003 fiz o vestibular para Ciências Sociais. Passei. Fiz o ano de 2004 inteiro. Gostei muito. Em 2005, ainda não tinha conseguido um trabalho porque o curso era diurno. Tive que abandonar a faculdade, com muito pesar. E soube que em algum momento ia voltar. Fui atrás de outro emprego um pouco melhor. Nesse emprego, juntei dinheiro. Trabalhei 8 meses, só o suficiente para juntar dinheiro. Em 2007, me matriculei em um curso noturno, semestral e estava super empolgado. Foi um ano decisivo em que voltei a estudar. Mas esse ano eu sofri uma perda muito grande na minha família. Meu irmão mais velho, trabalhando na portaria de uma empresa, a empresa foi assaltada e ele foi executado. Isso daí foi algo que foi difícil. Foi abril, eu me matriculei em março. Eu fiquei perdido, comecei a ter problemas com álcool, agressividade. Até que fui no psiquiatra, tomei uns remédios, dei uma baixada, voltei a estudar ainda nesse ano, em 2007. E por sorte, por Deus mesmo, passei no vestibular, fui beneficiado pelas cotas sociais. Entrei no curso de Direito na UFPR. Quando eu entrei em 2004, eu já havia me filiado ao PT, minha mãe já votava no PT, as pessoas da vila onde eu morava, porque tinha uma grande popularidade na periferia. Só que ao mesmo tempo, as pessoas do PT que me filiaram estavam saindo, e formando um novo partido, em 2005, o PSOL. Daí fiz parte do PSOL, em 2008 entrei na universidade. Fiz parte do movimento estudantil, criamos o coletivo “Maio”, denunciamos os professores ‘fantasmas’ que existiam na universidade. Fiz campanha para outras pessoas. Até que em 2016, depois de eu ter me formado, passei no concurso para a Defensoria Pública. Fui o primeiro presidente da associação de servidores da Defensoria. Saí depois porque as brigas que eu comprei foram grandes demais para que eu conseguisse continuar. Fui ser advogado popular. Em 2016, um ‘coronel’ do próprio PSOL ele me chamou e disse que o partido ia eleger uma pessoa (para vereador). E me chamou para compor a chapa. Eu nunca tinha tido essa experiência. Mas morei em muitos lugares. As pessoas falavam que eu tinha que ser candidato. Eu nunca levei a sério. Quando ele falou isso. Acontece que eu fiz 3.500 votos, a maior votação de um candidato a vereador do PSOL no Paraná. Sem panfleto, sem dinheiro. Faltou muito pouco para cumprir o quociente (eleitoral). Daí eu engatei na política porque as pessoas começaram a acreditar mais em mim. E já falaram que eu tinha que sair de novo. Em 2016 eu já tinha crise com o pessoal do PSOL, porque eles nunca acreditaram em mim. Fui para o PT, que é um partido de bases maiores, pessoas do povo. Fui candidato em 2018 a deputado. Tive 15.600 votos. Fiquei muito feliz. Embora tenha sofrido violência policial. Agora fui novamente candidato a vereador, fui vítima de outro tipo de violência, virtual. Mas fizemos uma campanha muito bonita.

RACISMO
Negros precisam ocupar os espaços de poder

Bem Paraná – As eleições de 2020 foram um marco para o movimento negro e da periferia de Curitiba. A que atribui o crescimento desse segmento, justamente no momento em que o Brasil vive uma polarização política extrema, com crescimento da direita?
Renato Freitas – Essa é uma das questões mais complexas para a gente entender hoje. Pela minha experiência, tenho 37 anos. E já vivi nesse grande campo de extermínio que é a periferia brasileira, sobretudo para a população negra, pobre e miserável. Eu sou negro, a minha mãe também veio do sertão da Paraíba que migrou para tentar a sorte em São Paulo. No berço da miséria, minha mãe conheceu meu pai que foi criminalizado, a gente não teve contato, ficou preso por um tempo. Nós moramos em áreas de ocupação e até hoje vivemos como ciganos. Aprendi que há duas formas de combater o conservadorismo nos moldes em que é proposto pelo bolsonarismo, o trumpismo e por essa onda no mundo. Ou o liberalismo. Porque a direita não é unificada. Há a direita conservadora e a liberal. Esse conservadorismo não é liberal na economia. E há a outra forma. São as políticas de esquerda, de tradição socialista. Quem detém a força para se opor com algum grau de efetividade contra o bolsonarismo, o trumpismo, é o capitalismo, a direita liberal, o PSDB, a Rede Globo. Esses grupos da direita liberal é que conseguiu impor suas pautas. Mas nos pontos de convergência, e há pontos de convergência entre os liberais e os socialistas: a reforma agrária, os direitos individuais, o republicanismo, também são pautas socialistas. E a igualdade racial, de gênero. E por incrível que pareça, os liberais foram mais efetivos no que diz respeito às liberdades identitárias do que os socialistas no Brasil. Porque o socialismo no Brasil virou um movimento intelectual, não um movimento de luta de classes. Como o PSOL. E essas pessoas são cada vez menos comprometidas com o mundo real. E negavam a determinação racial na estruturação das desigualdades no nosso país. Porque dizia que era tudo uma questão de classe. Porque para eles era mais conveniente. Porque quem são as pessoas que habitavam a universidade até o começo das cotas raciais em 2005, 2006, era exclusivamente branco. Não é que tinha uma minoria negra. Eu entrei em 2004 no curso de Ciências Sociais, era uma ‘colônia alemã’. Era um país que negava a existência das pessoas negras, inclusive a esquerda. E daí quando esses movimentos, teve a morte do George Floyd, nos Estados Unidos, conseguiram se organizar a partir de bases como o ‘Black Panthers’, que são bases de lutas socialistas, coletivistas, mas também tem uma tradição também nas lutas liberais, de afirmação de identidade, de gênero. Na minha leitura, o movimento internacional, e também porque a diáspora, os negros estão no mundo todo. Os Estados Unidos é o centro cultural de tudo isso. Influenciou o resto do mundo, a luta liberal contra o bolsonarismo no Brasil, capitaneada pela Rede Globo e outras forças. Afirma agora, pela primeira vez, que nós negros temos direito a nossa representação, à nossa própria história, e de lutar para que sejamos respeitados e incluídos. Por mais contraditório que seja, porque a própria Globo foi um dos protagonistas nesse papel de exclusão de pessoas negras a partir de estereótipos. Aqui não tem paquita preta. Mas, porque para lutar contra um inimigo em comum, essa estratégia foi adotada. Mas também isso potencializou uma luta que é tradicional, legítima, fruto de um movimento negro construído no Brasil, muito forte na década de 80, que teve no rap seu braço forte na década de 90 e que nos anos 2000 para frente foi aparelhado pelo petismo. Aparelhar o movimento negro e trazer para dentro de suas estruturas burocráticas. E não potencializar a sua força para fora. O contexto todo que permitiu que hoje, 2020, em plena ascensão do conservadorismo, nós consigamos triplicar a bancada do PT, e colocar duas pessoas negras como um feito histórico na cidade de Curitiba foi uma fusão de diversos fatores: do liberalismo, da nossa luta própria do movimento negro brasileiro, o fator do rap e dessa luta internacional contra o trumpismo também.

ESQUERDA
PT tem que voltar às bases e se renovar

Bem Paraná – Curitiba tem fama de “cidade europeia”, o que resulta, muitas vezes, em uma invisibilidade da população negra. Como mudar isso?
Renato Freitas – Primeiro eu acho que é difícil mudar uma construção tão forte e arraigada, porque a identidade de Curitiba é a identidade europeia. Os bosques, as praças. E aqui realmente a população negra é minoritária. A gente tem 30% de população negra, enquanto que na maioria das capitais do Brasil do Sudeste para cima tem maioria de população negra. E é claro que isso nos enfraquece. O racismo em Curitiba também é mais violento, por consequência. Enquanto em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, você vai ver um efetivo da Polícia Militar, por mais contraditório que seja, basicamente negro, aqui não. Aqui, a cada 50 policiais você vai encontrar um negro. Então você vai juntar a autoridade policial, das forças políticas, o senso comum racista, a auto representação curitibana da cidade europeia que se justifica a partir da desvalorização da população negra, e vai ter uma política de higienização do centro da cidade que o Rafael Greca leva à frente. A ideia de que a cidade tem que ser arquitetonicamente bonita, impecável, mas que seja uma cidade para as coisas, não para as pessoas. A população negra se vê desmobilizada, violentada, invisibilizada, excluída de todos os espaços de poder, inclusive das forças policiais. E ainda dizem que a gente inventa o racismo quando tenta reivindicar a nossa identidade afro-brasileira. Para que isso mude de fato, a gente tem que perceber essa violência, e fazer parte dos espaços de poder, como a Câmara de Vereadores. As universidades. O conhecimento, a política e também o Poder Judiciário. Um dos protagonistas da nossa exclusão e do processo de genocídio negro levado a cabo pelo Estado brasileiro é o sistema penal.

BP – O senhor vai compor a bancada de oposição na Câmara?
Freitas – Sim

BP – O senhor já foi alvo de violência policial. Em relação às políticas de segurança pública de Curitiba e dos procedimentos da Guarda Municipal, o que acredita que possa ser feito?
Freitas – Temos um projeto para a fiscalização institucional e popular das forças de segurança pública que não passem exclusivamente pelo corporativismo. Hoje, quem controla as câmeras e fiscaliza a atuação da Guarda Municipal é a própria Guarda Municipal. A gente quer que um representante do Ministério Público, órgãos de direitos humanos vinculados à OAB, ao Judiciário, da Câmara de Vereadores, da Assembleia Legislativa participem dessa fiscalização. E a gente vai fazer um projeto pedindo a câmera corporal dos agentes de segurança que vai fazer filmagens permanentes. Uma câmara na viatura da polícia e um dispositivo de GPS. E com isso a gente com certeza vai reduzir os danos, a questão do ‘kit flagrante’, das armas frias. Vai servir para resguardar a segurança dos cidadãos e também a segurança e legalidade dos próprios agentes de segurança pública. Estados como Santa Catarina e São Paulo que iniciaram esse processo viram reduzir drasticamente o uso de algemas, o índice de letalidade de confrontos com a polícia. O número de casos de desacatos, em Santa Catarina caiu a zero, porque geralmente é um curinga que eles têm nas mãos, de acusar o cidadão de desacato. Só isso daí seria suficiente como redução de danos para depois encaminharmos reformas estruturais para darmos segurança aos pretos e pobres das periferias das cidades.

BP – O senhor falou da importância do rap para sua formação. Em 2018, o Mano Brown (vocalista do grupo Racionais MCs), disse que o PT tinha perdido a capacidade de se comunicar com o povo. O que acha disso?
Freitas – Acho que o Mano Brown foi brilhante, assertivo. Falou o que era necessário falar e não o que as pessoas queriam ouvir. O mais interessante é que ele chegou para falar, viu aquela multidão, e havia um clima de comemoração. Ele disse: ‘estão rindo do quê? Da própria desgraça? Ou porque não estão sendo atingidos por essa desgraça? Porque já fazem parte de um setor vinculado à burocracia partidária, estatal, sindical, que tem alguns privilégios’. Esse recado que ele deu, de que o PT tinha que voltar à base, é porque as pessoas que estavam ali deveriam estar revoltadas, preocupadas, mas sobretudo comprometidos com a urgência da nossa demanda. Quem passa fome é para ontem. É isso que o PT não conseguiu compreender naquele momento, e foi perdendo quando passou a se integrando organicamente com setores da elite a partir de políticas de integração de classe. O perigo da conciliação é que você vai deixando de disputar o poder porque ele sempre esteve na mão de quem? Do PMDB, dos partidos de centro. O PT hoje, infelizmente, se olhar na Câmara de Deputados, não tem renovação. É tudo reeleição. O PT não conseguiu mais se renovar, estabelecer essa liga com a base. E lutou para se manter. Uma luta do conservadorismo. E a luta que a gente tem que ter é da modificação. O estado do espírito de nosso partido, infelizmente, é velho, conservador, que se não arriscar voltar as bases, sobretudo a juventude, à periferia, está fadado a uma crise. A base é a Dona Maria, com ensino fundamental incompleto, que trabalha 9, 10 horas na casa de família, e volta para a casa, para assistir novela ou programas fundamentalistas, que falam dos problemas do bairro dela, mas com os olhares do conservadorismo.