Com base em documentos oficiais, alguns deles compilados da Comunidade Setorial de Informações do Ministério da Marinha, e que foram apresentados na tarde de hoje (20) durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo concluiu que toda a estrutura de repressão política na ditadura militar brasileira foi planejada e obedecia a uma ordem de comando. Não existem porões da ditadura, concluiu Ivan Seixas, um dos coordenadores da Comissão Estadual da Verdade.

A cadeia de comando mostra que não existia vontade própria. Se o torturador resolvesse matar, não obedecendo à cadeia de comando, ele seria punido. Pela cadeia de comando vê-se que do ditador, que era supostamente o presidente [da República], até o torturador, que estava lá na ponta, todos tinham uma sequencia de comando. Obedeciam ordens e obedeciam orientações. E quem estava embaixo prestava contas do que fez, disse Seixas.

Segundo o coordenador da comissão, não houve situações durante a ditadura militar brasileira em que alguém pudesse ter sido preso, torturado ou morto sem conhecimento da cúpula. Todos sabiam. Isso é um fato. Essa estrutura não foi algo que nós concluímos. É um documento da repressão no qual está escrito que todos [os órgãos] vão se reportar ao SNI [Sistema Nacional de Informações], que se reporta ao presidente da República. Então, não existe uma coisa em que, em um determinado local, fizeram algo e não comunicaram porque senão estariam subvertendo a hierarquia, explicou Seixas.

Durante a audiência pública de hoje, que teve a presença de Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, e do vereador Gilberto Natalini, presidente da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, Seixas apresentou um organograma da ditadura militar, estrutura que observou em um documento da Marinha, e que definiu o SNI como o órgão central da rede repressiva, ao qual todos os demais órgãos respondiam.

A expressão porões [da ditadura] queria significar que acontecia alguma coisa em níveis subalternos e níveis inferiores que o comando, os governantes e os presidentes [da República] não tinham conhecimento e não desejavam. O que se comprova é que essa política foi planejada desde cima, desde uma cúpula, desde o SNI, com o presidente da República. É claro que houve um mínimo de autonomia na execução, como existe em relação a qualquer trabalho. As pessoas que são as executoras interpretam de uma forma ou de outra, mas havia o planejamento centralizado e hierárquico, vindo da cúpula, disse Rosa Cardoso.

O SNI era o órgão de cúpula do Sistema Nacional de Informações (Sisni), composto por vários centros de informações que funcionavam dentro da Aeronáutica, da Marinha e do Exército e tinha um braço também no exterior, controlando a atuação dos exilados e banidos do país. Dentro de sua estrutura, o Sisni era composto também pelos centros de operações de Defesa Interna (os Codis), órgãos de planejamento e de comando da estrutura militar de repressão no país, e das divisões de Segurança e Informação (DSI), serviço secreto específico para cada área de atuação. Os DSIs, por exemplo, eram responsáveis por vigiar os funcionários públicos e cidadãos brasileiros, detectando os possíveis inimigos do regime e funcionavam dentro de cada ministério do regime, seja ele militar ou civil.

Dentro dos DSIs, por exemplo, estavam as assessorias de Segurança e Informação (ASIs) ou assessorias especiais de Segurança e Informação (Aesis), que eram seus braços operacionais. Essas assessorias funcionavam dentro de empresas estatais, autarquias e até mesmo universidades.

As Aesis eram parte da estrutura de repressão. Nos ministérios existiam as DSIs, que eram a divisão de segurança e informação. Todos os ministérios tinham [as DSIs]. Nas suas instâncias inferiores – tais como empresas, autarquias e universidades – haviam as ASIs, explicou Seixas. A Aesi da Universidade de São Paulo [USP] era parte da cadeia do Ministério da Educação. Então, tudo se reportava ao Ministério da Educação. Os caras que faziam a vigilância, por exemplo, de estudantes que eles achavam que eram agitadores e de professores que eram cúmplices, reportavam tudo isso para o aparelho de repressão, falou.

Para Rosa Cardoso, a Comissão Nacional da Verdade precisa promover um encontro entre as diversas comissões da verdade que foram montadas pelas universidades de todo o país. Acho que a Comissão Nacional tem que fazer um encontro com essas comissões das universidades assim como fará, na próxima semana, um encontro com as comissões oficiais estaduais e municipais. Temos também que conversar com as comissões das universidades para que elas nos mandem documentos e informações para que possamos inclui-los no nosso relatório, disse.

Dentro da estrutura do Sistema Nacional de Informações existia também as comunidades complementares de informações. Algumas destas comunidades complementares pertenciam a entidades privadas que foram selecionadas para colaborar com o regime no que fosse solicitado. Havia comunidades complementares nos governos estaduais, como o Dops e a Polícia Militar, e nos municipais. Mas nas comunidades privadas tinha uma estrutura que não está determinada porque não tinham documentos oficiais, disse Seixas.

Segundo Seixas, existia uma ligação umbilical entre empresas privadas e o aparato de repressão e a Comissão Estadual da Verdade, da qual ele faz parte, está tentando obter documentos que comprovem e expliquem melhor essa ligação entre o regime e as empresas.

Durante a audiência, o vereador Gilberto Natalini pediu que a Comissão Nacional da Verdade possa ouvir o delegado da Polícia Civil Laertes Aparecido Calandra, um dos agentes repressores do regime. Em resposta, Rosa Cardoso disse que a comissão vai ouvir Calandra e deve voltar também a ouvir o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. O Calandra será ouvido pela Comissão Nacional e pela Comissão Municipal. Vamos emprestar e usar nosso poder de convocação, que permitem a condução coercitiva, caso o convite não seja atendido, disse. Rosa Cardoso disse que o depoimento de Calandra à Comissão Nacional da Verdade deve ocorrer até o final deste ano.

Natalini também disse que, na próxima segunda-feira, a Comissão Municipal de São Paulo vai pedir o reexame do crânio do motorista que dirigia o veículo em que estava o ex-presidente da República Juscelino Kubitschek. Juscelino morreu em um acidente de carro ocorrido em 1976.

O presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, o deputado estadual Adriano Diogo, disse que os trabalhos da comissão que preside, que já ouviu 159 vítimas do regime militar, irá agora se concentrar na cadeia de comando. A ideia, segundo o deputado, é reunir documentos que comprovem e expliquem o comando do regime.