Na passagem dos anos 1960 para 70, era comum a ida de artistas a Brasília, onde tentavam liberar pessoalmente suas obras vetadas pela censura. Em uma dessas aventuras, a dramaturga Leilah Assumpção travou uma insólita conversa com um censor, que implicou com o doce brigadeiro citado em uma de suas peças – seria uma alusão às Forças Armadas. ‘Perguntei qual era o doce preferido dele. ‘Baba de moça’, respondeu. ‘Vou trocar ‘brigadeiro’ por ‘baba de moça’, tudo bem?’. ‘Tudo bem’, concordou ele, satisfeito”, narra Leilah em Memórias Sinceras (Sá Editora), delicioso conjunto de anotações em que ela recupera fatos dos 50 anos de sua carreira.

O livro será lançado na tarde deste sábado, 16, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. “E vou servir brigadeiros”, diverte-se ela, finalmente realizando uma tardia vingança pessoal. Aos 76 anos, Leilah ainda surpreende com um estilo fluente e saboroso de narrar histórias – sua escrita parece a transcrição de uma conversa informal com o leitor a ponto de, em determinado momento, a própria narradora considerar sem graça o rumo do papo e propor uma mudança.

As memórias não seguem ordem cronológica, espalhando-se em 15 capítulos curtos que descrevem, em estilo de crônica, a fervilhante geração que ditou os caminhos da cultura brasileira dos anos 1960 a 1990. Antes de se tornar uma das melhores dramaturgas do Brasil, graças a peças como Vejo um Vulto na Janela, Me Acudam que Sou Donzela (de 1964, mas só encenada a partir de 1979), Fala Baixo Senão Eu Grito (1969, seu primeiro texto a ser montado), ou ainda Roda Cor de Roda (de 1975, que consolidou o aprofundamento analítico sobre a condição da mulher), Leilah chamou atenção quando, aos 20 anos, tornou-se modelo exclusiva do costureiro Denner.

Logo se percebeu que não se tratava de uma manequim comum. Escreve ela: “Eu adorava Filosofia. No começo da carreira de dramaturga, respondia o que se esperava de uma manequim: Que eu lia Capricho, Grande Hotel e outras revistinhas de amor. Certo dia, numa entrevista para o Jornal da Tarde, eu deixei escapar os nomes mais importantes da história da filosofia, em ordem histórica e tudo. Tinha me formado há pouco tempo, estava tudo fresquinho na minha cabeça! O diretor da Aliança Francesa, não me lembro qual, disse que eu, manequim do Dener, era muito, muito louca. Nunca gostei que me chamassem de louca”.

De fato, sua lucidez era espantosa. Jovem, vivia em um pensionato feminino em São Paulo. Lá, sonhava em se formar em Pedagogia, por influência da mãe escritora e do pai professor – desfilava por vaidade. Mas o apurado senso de observação do comportamento alheio a conduziu para a escrita, notadamente a dramatúrgica. Mariazinha, por exemplo, de Fala Baixo…, foi inspirada em uma das solteironas tristes do pensionato.

A peça, que marcou sua estreia no palco, revelou o que seria a principal marca de sua escrita: personagens femininas densas em busca do autoconhecimento e da liberdade. Crítico teatral do Jornal da Tarde, Sábato Magaldi registrou: “Disposta a colocar em xeque determinadas posturas assumidas no mundo do trabalho e no espaço familiar, a autora voltou-se para os problemas existenciais da mulher imersa numa estrutura política ditatorial”.

Surgia uma voz potente no teatro brasileiro. Leilah passou a delinear, como poucos, os diversos perfis da mulher moderna. Para isso, contou com exuberante presença cênica de Marília Pêra em 1969, com Fala Baixo… – e com a não menos inesquecível Irene Ravache, cuja carreira tomou novo rumo a partir de Roda Cor de Roda (1975). São suas peças em que o comportamento da mulher surpreende.

Fala Baixo… trazia Marília como Mariazinha, a solteirona marcada por frustrações que tem o quarto, certa noite, invadida por um homem armado (vivido inicialmente por Paulo Vilaça). O fato desencadeia uma transformação na rotina pacata da mulher, que envereda em uma alucinante busca do autoconhecimento e liberdade. “Marília me disse que via Mariazinha como uma concha, e que ela, Marília, tinha essa concha dentro dela também. E só bem mais tarde é que percebi que a personagem tinha algo de mim, que eu também tinha uma concha escondida lá dentro.”

Já Roda Cor de Roda, reputada por muitos como o melhor texto dramatúrgico de Leilah Assumpção, aprofunda a análise sobre a mulher que ela desenvolvia ao longo de seu trabalho. A peça nasceu, na verdade, em 1973, quando foi dirigida por Aderbal Freire-Filho e se chamava Amanhã, Amélia, de Manhã. A montagem carioca foi prejudicada por cortes e uma produção deficiente. Reestruturada e com uma inteligente direção de Antonio Abujamra, o texto, agora com novo título, mostra a mulher que, ao descobrir que o marido tem uma amante, transforma a própria casa em um bordel.

“A peça nasceu quando uma amiga manequim que morava comigo num apartamento teve um caso com um homem casado de Belo Horizonte”, escreve Leilah. “Ela se levantava cedo, ligava para a mulher dele e ficavam, as duas, hooooooras se xingando. Perguntei-lhe se as duas não tinham percebido ainda que elas é que estavam tendo um caso uma com a outra; o marido havia ficado de lado. Ele acabou vindo a se casar com ela em São Paulo. Hoje, já morreram todos.”

Ficou intacta novamente a dissecação do mito feminino e seus caminhos de libertação.