ROGÉRIO GENTILE

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Principal mecanismo de incentivo à cultura no Brasil, a Lei Rouanet está sendo usada para financiar com dinheiro público uma ação de marketing de uma empresa multinacional nas ruas da cidade de São Paulo.

A Colgate-Palmolive obteve do Ministério da Cultura o direito de descontar R$ 1,95 milhão do seu imposto de renda a fim de patrocinar um projeto de artes visuais intitulado Sorriso para Todos.

Criado pela agência de publicidade Aktuellmix, o projeto consiste em dois tipos de intervenção urbana que têm como principal elemento estético uma boca sorridente e os seus dentes brancos.

Espalhadas por mais de 50 endereços, elas dialogam com estratégia publicitária da Colgate, que pode ser resumida no conceito “sorriso saudável”.

Ao longo dos anos, expressões como “há 90 anos a gente faz o seu sorriso se destacar”, “o melhor presente é um sorriso” e “sorriso saudável, futuro brilhante” têm sido alguns dos slogans da empresa, que possui no seu portfólio o creme dental Sorriso.

Para obter apoio via Lei Rouanet, a agência explicou ao Ministério da Cultura que a finalidade do projeto era “trabalhar o conceito de arte de forma mais abrangente e criar relações afetivas com a cidade”.

Outros objetivos seriam “gerar oportunidades para os artistas plásticos e desenvolver a cadeia produtiva cultural”.

Na prática, o que a agência chama de exposição de arte são estruturas metálicas com testeiras customizadas nas quais a boca é o símbolo principal. No centro da peça, também em formato de boca, há um balanço infantil. Na lateral, aparece o nome Colgate, única apoiadora do projeto.

Outra intervenção é a Rua da Alegria, com balões coloridos e pórticos, que também valoriza a boca saudável.

Procurada, a Colgate afirma que a iniciativa não é uma atividade de marketing da empresa, mas um projeto da agência Aktuellmix que visa despertar o interesse pela arte e estimular um momento de alegria para as pessoas. Ela diz ser apenas patrocinadora.

Em seu site, a agência explica que sua estratégia tem base no “live marketing” (marketing ao vivo), na ideia de que as marcas devem propiciar experiências. “O consumidor sempre vai lembrar da experiência que aquela marca lhe proporcionou.”

A Lei Rouanet foi criada em dezembro de 1991 com o objetivo de “estimular projetos dotados de conteúdo cultural significativo”, bem como “apoiar as manifestações culturais e os seus criadores”.

A ideia era a de que, com base na lei, um artista teria mais facilidade para obter patrocínio de uma empresa, que poderia abater o valor investido do seu imposto de renda.

“Saímos de uma situação em que o produtor cultural pensava em projetos capazes de agradar aos diretores de marketing das empresas para outra na qual são os próprios diretores de marketing que criam os projetos”, diz a pesquisadora Ana Paula Sousa. 

Ela afirma que a lei é importante para manter viva a produção cultural e que muitas empresas a utilizam de forma adequada. “O problema parece ser o excesso de liberalismo no uso dos recursos”, diz. “Sempre que o Estado libera geral, o mercado faz a festa.”

Para Ricardo Ohtake, presidente do Instituto Tomie Ohtake, o ministério não faz uma análise adequada dos projetos apresentados. “O governo se preocupa em demasia com detalhes burocráticos, mas não com o efetivo conteúdo cultural das propostas”, diz.

OUTRO LADO

A Colgate-Palmolive, há mais de 90 anos no mercado brasileiro, afirma que o projeto não é uma ação de marketing.

“É um projeto que visa despertar o interesse pela arte e estimular um momento de alegria às pessoas”, diz.

Segundo a empresa, o projeto está em seu quarto ano e sempre contou com a aprovação do Ministério da Cultura e o patrocínio da Colgate. 

“Como regra, os projetos feitos através da Lei Rouanet têm como objetivo proteger, divulgar e valorizar a cultura. Todo o projeto, desde sua apresentação até a execução, segue estritamente as regras e orientações do ministério.”

O Ministério da Cultura afirmou que, com base na documentação apresentada, o projeto foi considerado adequado à lei e que, após a conclusão, sua execução e prestação de contas serão analisadas.

A pasta disse que, pela lei, ao analisar uma proposta, está impedida de fazer uma apreciação subjetiva quanto ao valor artístico ou cultural.

Diz que se atém a aspectos e critérios objetivos, como a adequação à lei de incentivo à cultura e a vinculação do projeto a uma das áreas previstas, assim como a finalidade cultural do proponente, tendo em vista a existência no contrato social de um código Cnae (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) da área cultural.

Diz ainda que todos os projetos são submetidos à apreciação de pareceristas e da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), formada por representantes do setor artístico, do setor empresarial, da sociedade civil e do governo.

Segundo o ministério, o Sorriso para Todos foi classificado como pertencente à área de artes visuais, no segmento exposição de artes visuais, por prever exposição com obras inéditas de variados artistas brasileiros, inteiramente aberta ao público em geral e sem cobrança de ingressos.