…de que meus quatro filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo caráter.

57 anos após proferir essas palavras, o sonho de Martin Luther King parece ficção. O racismo nega um direito básico do ser humano: ser um indivíduo. Pensar, sonhar e opinar por si. Condena uma criança, antes mesmo de nascer, a um destino genético. Põe cor na violência, na inferioridade e na submissão. Rejeita que imbecis e gênios circulam em todas as raças.

Vou citar um brasileiro pobre, neto de escravos, nascido em 1839. Tinha ambições intelectuais. Se em 2020 pobreza e intelectualidade se misturam como água e azeite, que dirá nos anos 1800. Esse jovem pobre investiu numa riqueza silenciosa. No amor, apaixonou-se por uma portuguesa. A família dela se opôs à união. A mulher ignorou. O apaixonado escreveu: Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. Em 1869, um homem querer se casar com uma mulher que pensa, só podia se chamar Joaquim Maria Machado de Assis. Genial!

Pergunto-me: como Machado enfrentou o racismo na era escravocrata? Como lutou por seus sonhos intelectuais? Como lidou com medo, insegurança, inveja e desprezo? Em minhas divagações, penso que o autoconhecimento fortaleceu seus sonhos. Devia ser um grande conhecedor de si próprio. Investiu no “conheça-te a ti mesmo” e ignorou os preconceitos que cruzaram seu caminho. Autoconhecimento não evita sofrimento, decepção e ilusão. Autoconhecer-se escolta a autoestima e nos encoraja a sermos fiéis aos nossos sonhos, convicções e valores sem sabotar a realidade. Creia em si, mas não duvide sempre dos outros, escreveu Machado.

O grande escritor não cursou faculdade. Provou que livros nos alçam a patamares inimagináveis. O crítico Harold Bloom escreveu: Machado de Assis, é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião.

Arrogantes, preconceituosos e escravocratas sempre existirão. A união de individualidades que pensam como Martin Luther King formará uma sociedade em que o real não pode ser sonho. Julgar alguém pela cor já devia ser comportamento “tiranossáurico”.

Para quem defende o racismo, sugiro dar uma passadinha na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Logo na entrada, o monumento a Machado de Assis, um dos fundadores. Ali, olhando do alto, o maior escritor brasileiro, gênio da narrativa, reverenciado e aclamado em vida, deve observar o coletivo racista e lastimar: quanto tempo consumido na perseguição alheia e desperdiçado da própria vida. A juventude é um relâmpago. Intensa e curta. A vida é breve e finita. Doai-a a ti e ao bem.

(*) Formada em Letras, Celina Moraes é escritora e cronista. Autora dos romances “Jamais subestime os peões” e “Lugar cheio de rãs”