SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma nova técnica de manipulação genética de alta precisão andou sendo festejada em muitos laboratórios ao redor do mundo e se tornou uma espécie de biotecnologia 2.0 para diversas aplicações, dentre elas a produção de alimentos. Mas uma decisão recente da Corte de Justiça da União Europeia pretende colocá-la no mesmo balaio de tudo que veio antes, submetida a regras rigorosas de liberação -o que pode atravancar a aplicação da técnica em inovações na agricultura.

Quem diz isso é o sueco Stefan Jansson, pesquisador de biologia vegetal e especialista em tecnologia de alimentos, que estará em São Paulo no próximo dia 16 para o seminário “O Futuro da Alimentação”, organizado pelo CIB (Conselho de Informações sobre Biotecnologia), em parceria com a revista Scientific American Brasil.

“Estou trabalhando com ciência básica, então para mim pessoalmente essa decisão não cria um problema, mas é bem diferente para quem trabalha mais perto do mercado”, disse Janssen. “A decisão não significa que o financiamento vai desaparecer de imediato, mas por que os contribuintes europeus iriam financiar o desenvolvimento de plantas que só poderiam ser cultivadas fora da União Europeia?”

Há dois anos, Janssen virou notícia depois que cultivou no próprio jardim um repolho modificado geneticamente pela técnica conhecida pela sigla Crispr-Cas9 e então o serviu numa refeição acompanhado por um radialista sueco. Até onde se tem notícia, foi o primeiro consumo humano de uma planta alterada pelo método.

“Foi basicamente uma declaração de que as plantas editadas por Crispr já estão aqui, não é algo que virá no futuro, então a sociedade precisa decidir agora como lidar com elas”, diz o pesquisador.

Com efeito, os tribunais da UE decidiram tratar do tema. Mas as coisas não saíram a contento dos cientistas. Em 25 de julho deste ano, a mais alta corte europeia decidiu que organismos que têm seu DNA alterado pela nova técnica devem ser submetidos ao mesmo rigoroso processo de avaliação e aprovação de organismos transgênicos.

Investigada a fundo desde o início dos anos 2000, a Crispr-Cas9 virou um frenesi por sua capacidade de editar um genoma de forma ultraprecisa. Crispr (pronuncia-se “crísper”) é a sigla para “repetições palindrômicas curtas interespaçadas regularmente e agrupadas”, o que também pode ser chamado de “uma sequência estranha e repetitiva de letras genéticas”.

Esquema do funcionamento do Crispr-cas9, técnica de edição do DNA que pode mudar o mundo da biologia, medicina e agronomia Reprodução Esquema do funcionamento do Crispr-cas9, técnica de edição do DNA que pode mudar o mundo da biologia, medicina e agronomia    Os pesquisadores descobriram que provavelmente se trata de um mecanismo de defesa usado por bactérias. Em meio às tais sequências repetitivas no DNA da bactéria, são armazenados trechos de vírus com que ela tenha entrado em contato. Ou seja, cada Crispr no genoma bacteriano serve como uma pequena ficha de catálogo dos inimigos com que a bactéria já se defrontou.

Esse DNA em si é inerte, mas seu conteúdo é transcrito para uma molécula móvel, o RNA, que por sua vez se conecta aos trechos correspondentes do genoma do vírus se ele invade a bactéria. E aí vem o golpe final: uma proteína chamada Cas (normalmente a Cas9, mas há várias versões), que em essência tem a função de picotar DNA, vai até os segmentos “marcados” pelo RNA e os corta, com precisão cirúrgica, eliminando a funcionalidade do vírus e detendo a ameaça.

Uma vez descoberto, não demorou até que os cientistas pensassem em convertê-lo numa ferramenta de edição genética. Vamos supor que, em vez de eliminar um vírus, você queira cortar um gene de uma planta, que seria particularmente inconveniente. Você pode colocar o trecho a ser deletado numa Crispr, injetar na planta e deixar a Cas9 fazer o trabalho de picote preciso.

Como o que a Crispr-Cas9 faz é cortar um pedaço de DNA que já está na planta, e não introduzir um gene de outro organismo nela (como acontece com os famosos transgênicos), os cientistas argumentam que a tecnologia não é diferente da mutagênese tradicional, em que uma planta é induzida a sofrer mutações aleatórias por radiação, até aparecer uma mudança genética vantajosa.

Plantas produzidas por mutagênese não passam pelo mesmo rigoroso processo de aprovação que os transgênicos na Europa. “É o anticapitalismo, não a anticiência como dizem alguns, a principal motivação subjacente dos que trabalham contra a biotecnologia na agricultura”, diz Jansson.

A decisão parece jogar água no chope dos pesquisadores que estavam apostando na Crispr-Cas9 justamente para contornar as barreiras legais. “O que vejo meus colegas fazendo agora é reinventar a roda; usar Crispr para refazer os tipos de cultivares que eles já haviam produzido nos últimos 15 anos por ‘técnicas tradicionais de OGM [organismos geneticamente modificados]’, mas que não puderam entrar no mercado”, afirma.

A despeito do potencial da técnica, alguns sonhos continuam sendo sonhos, segundo ele. “Fazer as plantas ‘crescerem mais depressa’ é muito mais difícil, o cultivo clássico não foi muito bem-sucedido nesse quesito e o mesmo será verdade para as novas técnicas.”

Embora o Brasil tenha legislação menos rigorosa que a União Europeia no tema OGM, a decisão europeia deveria preocupar também o agronegócio local. “Vocês não podem se desacoplar da gente; se bloquearmos a importação de variedades de OGMs, claro que isso afetará seus produtores negativamente. Essa é uma –talvez a maior– razão pela qual a UE não pode se livrar de sua resistência a OGMs. Mesmo com toda a evidência científica dizendo que não há riscos maiores, apenas alguns benefícios, a aplicação do princípio da precaução da forma que fazemos cria uma eficiente barreira comercial. É de fato protecionismo disfarçado.”

A crítica de uns, claro, é a festa de outros. A decisão europeia foi comemorada por organizações ambientalistas como a ONG Amigos da Terra.