Atingidos em cheio pela pandemia, não só os teatros ficaram vazios em 2020. Muitos festivais de artes cênicas Brasil tiveram suas atividades interrompidas, uns no susto, outros pela duração da quarentena.

Realizado sempre a partir de agosto, nos últimos anos, o Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília sentiu a ameaça da covid-19, mas não perdeu 2020 de vista: a edição da mostra vai reunir espetáculos em diferentes formatos entre os dias 1º e 11 de dezembro.

Uma reformulação que exigiu atenção de todos, artistas e festivais, para que a ausência do palco não fosse tão sentida, reflete o ator e roteirista Paul Lazar, que estreia o espetáculo Cage Shuffle: Um Dueto Digital, no dia 6, transmitido no site e no canal no YouTube do Cena Contemporânea. “Documentar uma peça em vídeo se tornou uma necessidade tão artisticamente sofisticada quanto qualquer outro elemento”, explica ao Estadão, por e-mail.

“Um grande desafio é que o processo de captura em vídeo seria bastante primitivo e, portanto, a peça se perderia na tradução.”

O ‘dueto virtual’, com a bailarina e coreógrafa Bebe Miller é inspirado em histórias curtas do compositor, pioneiro na música eletroacústica e inventor de instrumentos não convencionais.

Morto em 1992, John Cage deixou um legado especial para a dança, o teatro e a performance que redefiniu o corpo na cena, em episódios que desafiam o tempo de todos: da obra e do espectador.

Há 19 anos, uma igreja na Alemanha iniciou a apresentação ininterrupta de órgão mais longa do mundo, com a canção As Slow as Possible (Tão Lentamente Quanto Possível), de Cage. Em setembro deste ano, o instrumento teve sua primeira troca de nota em sete anos – a anterior foi em 2013. A meta é chegar, fazendo som, em 2640.

Chamado de “músico-poeta-pintor” por Augusto de Campos, Cage era combativo, mas também acompanhado da sorte, defende Lazar. “Ele denunciou Beethoven, evitou a psicanálise e foi um especialista em cogumelos”, lembra. “Mas era um estranho que teve sorte, um homem branco ‘bem-educado’. Então ele podia se mover facilmente, mesmo que não estivesse apegado a valores convencionais.”

O caos que atraía Cage tinha propósito. Devolver ao mundo um ponto de vista sobre a enorme existência. Em Cage Shuflle, as histórias narradas no espetáculo denunciam a normalidade diária. “Falam sobre o absurdo da chamada vida normal”, aponta Lazar. “Ele considerava essa conduta de vida convencional muito estranha.”

Na trajetória de Cage, antes de compor a chamada ‘música aleatória’, o artista perseguiu pistas nos estudos do budismo e da filosofia indiana. É de 1952 a famosa – e curiosa – composição de 4’33, executada por grandes orquestras em teatros de todo o mundo. Para se ter uma ideia da “poesia silenciosa” de Cage, vale a busca de concertos de 4’33’ na internet. “Acredito que ele sentiu que o mundo natural tinha muito a ensinar”, intui Lazar. “Mesmo que as pessoas estivessem ignorando as lições da natureza.”

Com Bebe em cena, Lazar não deixa de romper barreiras porque foge ao óbvio, ao literal. “No dueto há uma relação adorável, surpreendente e não forçada entre o movimento e as histórias”, conta ele. O espetáculo realizado em formato especial para o festival teve ensaios com quatro câmeras durante um mês antes de ser filmado, uma recusa ao modelo de transmissão ao vivo feito durante a pandemia. “A performance na era da covid-19 ainda pode ter um pouco da energia crua de corpos vivos, coexistindo, mas a captura de vídeo tem que ser rigorosa e sofisticada ou a performance será perdida.”

Programação

Entre os destaques do Cena Contemporânea, o grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol estreia um espetáculo que traz no título um papo sobre a forma de se fazer teatro na pandemia. Cada vez que alguém diz isso não é teatro, se apaga uma estrela abre o festival com transmissão no site do Cena e no canal do YouTube. Outro grupo frequentador da mostra, que retorna ao festival, o espanhol Agrupación Señor Serrano lança ideias sobre imigração na Europa no espetáculo Birdie, a partir do filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock.

Na programação, o Cena também traz espetáculos ao vivo. Hibridity (Hibridismo), da companhia de dança Cocoodance, cria uma fusão de movimentos do muay thai e passos do balé romântico. O espetáculo será transmitido da cidade de Bonn, na Alemanha, no dia 5, às 17h (horário de Brasília).

Entre as produções nacionais, os Clowns de Shakespeare refletem sobre o impacto da pandemia no fazer teatral e na América Latina em Clã_Destin@, uma peça virtual para seis pessoas por sessão.

SERVIÇO

FESTIVAL CENA CONTEMPORÂNEA.

1ª A 11/12. GRÁTIS.

MAIS INFORMÃÇÕES NO SITE

http://www.cenacontemporanea.com.br/

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.