LÚCIA MONTEIRO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Baseado no entrelaçamento construído com precisão entre passado e presente, história coletiva e drama particular, documentário e ficção, “A Cidade do Futuro” narra os percalços de uma trinca de personagens que desafia as tradições familiares do interior da Bahia.

Premiado no festival argentino Bafici, o segundo longa-metragem da dupla Cláudio Marques e Marília Hughes (do festejado “Depois da Chuva”, de 2013) tem como foco a vida de Milla (Milla Suzart), Gilmar (Gilmar Araújo) e Igor (Igor Santos).

Os dois primeiros são jovens professores de uma escola, ela de teatro, ele de história. O último é vaqueiro e namora Gilmar às escondidas.

A trama tem lugar em Serra do Ramalho, município erguido na década de 1970 para abrigar os 73 mil deslocados pela construção da hidrelétrica de Sobradinho. Em suas aulas, Milla e Gilmar trabalham com os alunos a memória do lugar, chamado pela propaganda oficial de “Cidade do Futuro”.

Vemos imagens de arquivo da população sendo desalojada das margens do Rio São Francisco e ouvimos, no presente, o depoimento dos deslocados, ainda críticos à política de indenização praticada pelo governo.

No filme, mais do que pano de fundo para o drama dos personagens, o passado da região é reapropriado e atualizado. Milla fica grávida de Gilmar; este pede Igor em casamento, propondo-lhe uma paternidade compartilhada que obviamente provoca reações violentas da comunidade.

Inspirada na trajetória real dos três atores, a trama contribui para uma visão do interior nordestino que combina tradições populares, tecnologia atual, revolução dos costumes. Remete, nesse sentido, ao melhor do cinema de Karim Aïnouz (“O Céu de Suely”, 2006), lembrado também na maneira como hits românticos (e bregas) são inseridos no filme —a canção “Jeito carinhoso”, da dupla sertaneja Jads e Jadson rende dois bons momentos.

Na tensão criada entre documentário e ficção, lembrança dolorida da paisagem alterada pela barragem e embates atuais dos personagens, algumas referências são o cinema do chinês Jia Zhang-ke (“Still Life”, 2006) e do brasiliense Adirley Queiroz (“A Cidade é Uma Só?”, 2013).

“A Cidade do Futuro” dá prova da crença dos realizadores no poder do cinema, e é um sopro de esperança. Entre os traumas de nossa história e os vislumbres de abertura, o filme aponta um caminho de transformação. De fato não se trata de um processo indolor. Mas é bom que a possibilidade de um final feliz exista.

A CIDADE DO FUTURO

Quando: estreia nesta quinta (26)

Produção: Brasil, 2016, 14 anos

Direção: Cláudio Marques, Marília Hughes

Avaliação: ótimo