SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A chegada de milhares de pessoas fugidas da guerra, da perseguição política e da miséria na África e no Oriente Médio à ilha de Lampedusa não tem abalado o cotidiano dos habitantes dessa pequena comunidade do sul da Itália. Ao menos é o que sugere o documentário “Fogo no Mar”, do diretor italiano Gianfranco Rosi.

O filme, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2016, foi exibido na Cinemateca, na última quarta-feira (17), como parte do módulo “Mal-estar na civilização e distopia”, do Ciclo de Cinema e Psicanálise, promovido pela SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo) e pela Cinemateca, com apoio da Folha de S.Paulo.

No debate que se seguiu à sessão, Sandra Moreira de Souza Freitas, psicanalista e membro efetivo da SBPSP, chamou a atenção para o contraste registrado pelo filme entre o mundo estável dos “de dentro”, moradores de Lampedusa, e o mundo desprovido de qualquer regularidade dos “de fora”, os refugiados que desembarcam diariamente na ilha.

Com efeito, a rotina consolidada dos habitantes de Lampedusa impede qualquer questionamento acerca dos motivos e da justiça de seus costumes e valores. As brechas que se abrem nessa ordem são facilmente incorporadas a ela e resolvidas, como as vertigens do menino Samuele.

Por outro lado, os “de fora” parecem viver em outro mundo, outra humanidade e outro tempo. Suas rotinas foram rompidas e a própria representação de si mesmos é ameaçada. As cenas em que grupos de refugiados contam e cantam sua história e jogam futebol expressariam a tentativa de preservar “identidades coletivas, regras conhecidas e, portanto, alguma estabilidade”, afirmou Sandra.

Segundo a psicanalista, assistimos ao filme com a expectativa de que esses mundos se encontrem. Mas eles não poderiam se encontrar, pois não são aparentados e os “de dentro” não querem saber o que ocorre do outro lado. “Parece que eles nem acreditam que é verdade o que acontece ali tão perto.”

Para o jornalista da Folha Naief Haddad, que também participou do debate, além da divisão entre as realidades dos refugiados e dos habitantes da ilha, o documentário se estrutura em torno de um terceiro eixo, representado pela personagem de Samuele. Nas palavras do diretor, reproduzidas por Haddad, o garoto “é um pouco como nós europeus, pois não sabe o que fazer diante da situação”.

O problema de vista de Samuele, diagnosticado como olho preguiçoso, segundo o jornalista, seria uma metáfora para a dificuldade com que o Ocidente enxerga os refugiados. O grande mérito do filme estaria nas “variações de nitidez que ele oferece em relação a essa tragédia”. O ponto máximo é alcançado quando a câmera entra no porão de um barco em que corpos de imigrantes amontoados se confundem com o lixo – “uma cena de navio negreiro”, disse o jornalista.

ELEVAÇÃO E DECLÍNIO

Ao aproximar-se de dramas individuais geralmente abordados de maneira abrangente, o documentário permite que o refugiado “se torne humano como cada um de nós”. O que é possibilitado, segundo Naief, pelo interesse no homem comum, anônimo, que marca o estilo documental de Rosi.

Em “Fogo no Mar”, um desses homens é o dr. Bartolo, médico que cuida tanto dos habitantes de Lampedusa, como Samuele, quanto dos refugiados. Ele configura o único ponto explícito de contato entre os dois mundos.

Sandra o descreve como “o homem contemporâneo, justo, que poderia salvar a humanidade”. Pois ele incorpora a realidade dos imigrantes na sua rotina e não se blinda do sofrimento. Pelo contrário, sofre com as mazelas dos refugiados e sua impotência diante delas.

A psicanalista sugeriu, então, um paralelo entre a prática do médico e o conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe de elevação em humanidade. A cena em que o dr. Bartolo faz um ultrassom numa refugiada grávida e se encanta com a visão de seus gêmeos teria o caráter transformador “de um encontro dos mundos em que há reparação, amor e justiça”.

Naief é menos otimista. O recente fechamento das fronteiras italianas à chegada de refugiados, determinado pelo novo governo italiano, agravou a situação retratada pelo filme. Seria mais apropriado falar em “declínio em humanidade”, portanto.

Seguiríamos, enfim, a tradição de nosso processo histórico, caracterizado, segundo a psicanalista, por “um longo habituar-se com a tristeza dos outros”.

O próximo encontro do Ciclo de Cinema e Psicanálise acontecerá na próxima quarta-feira (31), às 19h, com a exibição de “Relatos Selvagens” na Cinemateca (largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, São Paulo).

É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h.