RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – ​Subir num ponto de táxi, dançar ao som de um funk que diz “falei pra minha mãe que eu queria ser mulher”, introduzir um dedo no próprio ânus e, depois, receber um jato de urina na nuca.

Protagonizada por dois rapazes no Blocu, cortejo que passou nesta segunda-feira (4) no centro de São Paulo, a cena foi parar na conta de Twitter do presidente Jair Bolsonaro (PSL) como exemplo de depravação carnavalesca.

Mas não foi um fervo de Carnaval, como Bolsonaro deu a entender ao tuitar no dia seguinte que, embora não se sentisse confortável em mostrar a cena, era preciso expor a verdade para a população, já que para o presidente é isso “que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro”.

Tratou-se de um ato político-artístico “planejado com o intuito de comunicar uma mensagem de artistas” que assim se definem: “Não somos homens, somos bixas”. É o que diz um manifesto da dupla por trás do número realizado no Blocu, descrito na programação carnavalesca como “um bloco com muito brilho feito para escandalizar e carnavalizar geral”.

Eles anteciparam à reportagem o texto, que milita “contra o conservadorismo e contra a colonização dos nossos corpos e nossas práticas sexuais”.

“O presidente, frente à enxurrada de críticas nos carnavais de todo país, preferiu produzir outra cortina de fumaça nas redes”, dizem os artistas no texto após a repercussão tsunâmica do vídeo.

“Afinal, é mais importante fiscalizar o cu alheio (literalmente) que tratar de administrar o país e dar melhores condições de vida para quem precisa. E nós, a população brasileira, merecemos respeito independente das práticas sexuais, das identidades de gênero, de raça e de classe”, continua o manifesto.

Os dois jovens, na casa dos 20 anos, não querem revelar a identidade por medo de represália de apoiadores do presidente, que, após publicar o vídeo, foi criticado por postar conteúdo inapropriado numa conta com mais de três milhões de seguidores e por sugerir que o Carnaval como um todo estava exemplificado na performance dos dois jovens.

Depois o presidente diria, em nota, que “não houve intenção de criticar o Carnaval de forma genérica, mas sim caracterizar uma distorção clara do espírito momesco”.

Deletaram suas contas em redes sociais, dizem ter saído da cidade por não ter coragem de sair da rua, por serem facilmente reconhecíveis, e pedem que quaisquer detalhes sobre rotina e biografia sejam omitidos nesta reportagem, para dificultar a identificação deles.

O que topam revelar: a ação no Blocu integra um projeto, a Ediy, que no manifesto é descrita como “uma produtora pornográfica que trabalha a partir de corpos e desejos desviantes”. O site será colocado no ar em meses, afirmam.

O texto critica a pornografia tradicional, que na visão do duo “encolhe nossa sexualidade […] com os papéis de gênero machistas e misóginos que enxergam os corpos feminilizados como buracos”. Já eles, dizem, estão “ao lado da imoralidade de vidas ditas como irrelevantes e matáveis. Somos os corpos não docilizados da escatologia social”.

Já que Bolsonaro ajudou a viralizar o momento, continua o texto, “propomos uma discussão sobre práticas sexuais não hegemônicas e hegemônicas”.

“Agradecemos pela divulgação e nos colocamos abertamente a favor do seu impeachment. Os ataques a direitos historicamente conquistados, a licença para matar conferida contra as populações indígenas, invisibilização de populações marginalizadas como nós LGBTTQIAN+, os ataques às mulheres cis e trans e à população negra, quilombola e com diversidade funcional o justificam. Pois estamos sendo mortas e nossos direitos sendo violados”, escrevem no manifesto.

O texto termina com a hashtag #goldenshower, referência a um tuíte que Bolsonaro postou na Quarta-Feira de Cinzas perguntando “o que é golden shower?”. A expressão em inglês significa o fetiche de urinar na frente de um parceiro ou sobre ele. Urofilia é o termo técnico.

Ao final do manifesto vem uma nota assinada pelos advogados Flavio Grossi e Cynthia Almeida Rosa, que representam os artistas.

Diz o trecho que o vídeo foi tuitado de forma irresponsável e carente de embasamento técnico por Bolsonaro. A performance foi feita de forma articulada e intencional em uma “festa do povo e para o povo, cultivada desde o período colonial, inclusive com notável caráter político, tendo se prestado como veículo da insatisfação popular com seus governantes em muitos momentos”, afirmam.

Segundo os defensores, “a performance retratada no dito vídeo está amparada constitucionalmente e qualquer esforço em desqualificá-la, reprimi-la ou reprová-la pode ser enquadrada como ato de censura”.

A reportagem questionou um dos integrantes da dupla se ele temia a possibilidade de o ato ser enquadrado como ato obsceno e se os dois se preocuparam com a cena ser vista por menores de idade, uma vez que foi realizada em ambiente público.

Um dos membros respondeu que a responsabilidade, ao compartilhar em sua rede, seria do presidente. E que produção deles não circulava em mídias tradicionais —isso até o tuíte presidencial colocá-la em evidência.

Sobre o receio de que crianças possam ter testemunhado o ato, ele afirma que a exposição para pessoas desinteressadas nesse tipo de arte foi culpa de Bolsonaro, porque o bloco onde eles estavam era declaradamente LGBTQ. Lá, aponta, a performance foi aplaudida.

ÍNTEGRA DA NOTA

“MANIFESTO GOLDEN SHOWER

Ao contrário do que disse o presidente da República, o vídeo que ele tuitou não era “um fervo imoral de carnaval”. Era uma performance, ato de cunho artístico, planejado, com intuito de comunicar uma mensagem de artistas. Nossa performance, portanto, é ato político. Um ato contra o conservadorismo e contra a colonização dos nossos corpos e nossas práticas sexuais.

Nós somos a ​Edyi​, uma produtora pornográfica que trabalha a partir de corpos e desejos desviantes. O ​pornoshow é uma prática de performance, dança e pornô contra a pornografia tradicional, que coloniza e encolhe nossa sexualidade. Nossos corpos e desejos dissidentes rompem com os papéis de gênero machistas e misóginos que enxergam os corpos feminilizados como buracos. Nós estamos ao lado da imoralidade de vidas ditas como irrelevantes e matáveis. Somos os corpos não docilizados da escatologia social. Nossos desejos não dialogam com o sistema sexo-produtivo do cis-heterossexismo, masculino e branco. Em tempo: não somos homens, somos bixas.

Apesar de surpresas com a repercussão do registro da nossa performance, a pornoshow, é importante contextualizar a ação que o presidente e sua turma tiveram acesso via Twitter. Ela é uma resposta ao retrocesso moral e institucional que avança desde o dia de sua posse, porque estamos cansadas.

O presidente, frente à enxurrada de críticas nos carnavais de todo país, preferiu produzir outra cortina de fumaça nas redes. Afinal, é mais importante fiscalizar o cu alheio (literalmente) que tratar de administrar o país e dar melhores condições de vida para quem precisa. E nós, a população brasileira, merecemos respeito independente das práticas sexuais, das identidade de gênero, de raça e de classe.

Já que o presidente nos viralizou, propomos uma discussão sobre práticas sexuais não hegemônicas e hegemônicas. Não esperem que transemos para reprodução, tampouco que nos digam como devemos transar. Não estamos aqui para falar o que é certo, errado, ou impor qualquer coisa. Queremos respeito e direitos iguais.

Agradecemos pela divulgação e nos colocamos abertamente a favor do seu impeachment. Os ataques a direitos historicamente conquistados, a licença para matar conferida contra as populações indígenas, invisibilização de populações marginalizadas como nós LGBTTQIAN+, os ataques às mulheres cis e trans e à população negra, quilombola e com diversidade funcional o justificam. Pois estamos sendo MORTAS e nossos direitos sendo violados.

Mas nós já começamos e não vamos parar. Não daremos nenhum passo atrás. Para encerrar a polêmica sobre o carnaval, estamos de acordo com Leandro Vieira, carnavalesco da vitoriosa Mangueira: “O carnaval é a festa do povo, é cultura popular. Não é o que ele acha que é. Ele devia mostrar para o mundo o carnaval da Mangueira, da arte e da luta.”

#ImpeachmentBolsonaro #goldenshower #pornoLGBT+”

NOTA DOS ADVOGADOS

“O vídeo em que se exibe a prática conhecida como ‘golden shower’, tuitado de forma irresponsável e carente de embasamento técnico pelo Senhor Presidente da República se trata, na verdade, de uma perfomance artística ocorrida no carnaval de rua, em São Paulo. Os artistas o fizeram de forma articulada, visando um manifesto cultural, dentro dos limites da legalidade.

Cabe alertar o sr. Presidente que o Carnaval é uma festa do povo e para o povo, cultivada desde o período colonial, inclusive com notável caráter político, tendo se prestado como veículo da insatisfação popular com seus governantes em muitos momentos. Estado Democrático de Direito que –ainda– somos, a Carta da República garante, em seu artigo 5º, inciso IX, a liberdade de manifestação cultural e artística. Nesse sentido, é de se ressaltar que a performance retratada no dito vídeo está amparada constitucionalmente e qualquer esforço em​ desqualificá-la, reprimi-la ou reprová-la pode ser enquadrada como ato de censura.

Diante da postura incompatível com a solenidade exigida do Presidente da República, que no Brasil acumula as funções de chefe de governo e de chefe de Estado, que infla sentimento de repúdio a LGBTs, e da repercussão dos fatos, os artistas apresentam seu manifesto.

Flavio Grossi e Cynthia Almeida Rosa, advogados, representantes dos artistas”