Sambista dos mais populares entre o início dos anos 80 e final dos 90, vendedor de, até onde se contabilizou, 3 milhões de discos, ex-morador de rua, ex-pintor de parede e inquilino de um barraco no Morro do Cantagalo por 15 anos, Bezerra da Silva passa por um silencioso processo de apagamento. Muitos dos sambas que cantou em seus 28 discos, identificados como apologistas da bandidagem e da misoginia, são patrulhados por um politicamente correto recrudescido por justas causas nas duas últimas décadas e deixados de lado pelo próprio samba. Cantar Bezerra se tornou um ato arriscado. “Ninguém quer correr o risco de ser cancelado”, comenta o compositor e cantor Chico Alves, também proprietário da casa Traço de União. “As pessoas estão com medo”, diz o filho do homem, o também sambista Ítalo Bezerra.

Ao morrer aos 77 anos, em 2005, Bezerra já sabia o que era ser maldito e viu cada um de seus sucessos lhe reservar dois destinos: ao mesmo tempo em que se tornava herói aos despossuídos, reforçava contra si o ódio de tudo o que existia da classe média pra cima. Desde Pega Eu, de 1979, até Malandro é Malandro e Mané é Mané, de 1999, nada era poupado. Além de juízes, políticos, delegados, padres, defuntos, pastores, manés, macumbeiros falsos e sogras, todas as sogras, seu nome não era bem quisto nem pelo samba do reino. “Fale aí uma participação de um sambista de renome em qualquer LP do meu pai”, desafia Ítalo.

LOBO SOLITÁRIO

Sem ser chamado à mesa pela turma de Paulinho da Viola, Paulo Cesar Pinheiro e Beth Carvalho, e ignorado pelos jovens que redesenhavam o partido alto com mais velocidade e força percussiva em Cacique de Ramos, de onde sairiam Almir Guineto, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e todo o Fundo de Quintal, Bezerra só não era um lobo solitário porque tinha os morros e a poderosa Baixada Fluminense a seu dispor – assim como os morros e a Baixada só não eram de mentira, com alvoradas sob as quais ninguém chorava e não havia tristeza, porque tinham Bezerra.

Ao contrário dos cronistas de veia literária, como Noel, Cartola, Nelson Cavaquinho, Chico e Aldir Blanc, e longe da romantização que pega de Zeca aos pagodes do Só Pra Contrariar que Bezerra absolutamente odiava, sua favela era inóspita, machista, homofóbica e bem humorada. “Como vou cantar o amor se eu não tive amor?”, dizia.

Era ao morro que recorria para colher letras e melodias com carteiros, camelôs, garis, bicheiros, bombeiros, serventes de pedreiro, taxistas, desempregados – todos nascidos no samba. “Depois que Bezerra gravou Minha Sogra Parece Sapatão, consegui comprar minha casa”, diz Roxinho, ex-ajudante de montador de estruturas e, hoje, depois de 10 sambas na voz do artista, dono de um bar em Mesquita.

Seu samba é um forte candidato ao silenciamento por dois desajustamentos sociais em uma só frase: o canto contra sogras e a palavra sapatão. “Sei que é preciso tomar cuidado”, diz Marcos Diniz, autor de Cobra Mandada e Medo de Virar Galeto. “Mas chegamos a um ponto em que, se olharmos diferente, saímos algemados.”

Mas, então, o que dizer de Canudo de Ouro, sobre um padre que vendia cocaína na sacristia e cobrava em dólar? “Quem quiser cafungar ou dá dois / Vai na sacristia com o sacristão / Mas leve em dólar que a coisa é da boa / Porque com o cruzeiro não tem transação.” De Quem Usa Antena é Televisão, sobre o dia em que uma mulher apanhou feito ladrão por trair o marido? “Eu fico no barraco e você leva a nega / Essa piranha brava eu não quero mais não.” Ou de Meu Bom Juiz, de 1986, algo que o rap só faria dez anos mais tarde e que pode ter custado mil portas fechadas por humanizar um traficante e pedir sua absolvição. O traficante? José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha: “Ah, meu bom juiz, não bata este martelo nem dê a sentença / Antes de ouvir o que o meu samba diz / Pois este homem não é tão ruim quanto o senhor pensa.”

“Fazem uma confusão perigosa”, diz o historiador Luiz Antonio Simas. “Bezerra era um cronista de sua realidade, não um apologista de bandido.” A antropóloga Letícia Vianna, autora do livro Bezerra da Silva Produto do Morro – Trajetória e Obra de Um Sambista Que Não é Santo, o considera um sociólogo. “O que ele diz quando fala sobre a prisão de Escadinha? Ele fala de uma reação nas relações sociais do morro. E ele é produto deste morro. Se vão cancelar Bezerra, precisam cancelar também Noel Rosa e Wilson Batista.”

Apagamentos, ao contrário da estridência de um cancelamento, são fenômenos potencializados no mundo pós redes sociais de forma não deliberada nem assumida. Simplesmente não se fala e não se toca. Ainda que não haja placas de “proibido Bezerra” nas rodas conhecidas pela reportagem, os repertórios falam por si: recantos no Rio como Samba do Trabalhador, Beco do Rato, Pedra do Sal, Carioca da Gema, Cacique de Ramos, Semente e Rua do Ouvidor, ou de São Paulo, como Bar Samba e Vila do Samba, dificilmente, ou nunca, passam por Bezerra. Um dos únicos redutos paulistanos é a roda Favela Pesada, na zona leste.

“Quem tem de manter Bezerra vivo são os fãs”, diz Martinho da Vila. Uma das poucas vezes que ele cruzou com o pernambucano foi em seu antigo bar, o Butiquim do Martinho. “Mas Bezerra queria ir embora e eu não entendi nada.” Já na rua, Bezerra confessou: “Sabe o que é, cumpadi, eu não fumo e não bebo, e está todo mundo fumando e bebendo aí.” Sinal do personagem que existia ali dentro.

Sem regravações de seus sucessos, ainda que tenha mais de 388 mil ouvintes mensais no Spotify – Martinho tem 1.535.752 milhão e Zeca passa dos 1.830 milhão – o sambista foi rejuvenescido duas vezes, nenhuma delas pelo samba. Em 96, o Barão Vermelho gravou Malandragem Dá um Tempo. “Está faltando humor às pessoas. Eu voltei a cantar esta música há um mês e ninguém reclamou”, conta Frejat. Em 2010 foi um rapper, Marcelo D2, quem fez Marcelo D2 canta Bezerra da Silva, o único tributo ao sambista: “Só estamos discutindo isso, machismo, violência, tráfico, porque caras como ele jogaram esses problemas na mesa”, diz. “Cara, vou usar um pensamento do próprio Bezerra: se um rico fala de tráfico, é pesquisa. Se um podre fala de tráfico, é traficante. Isso tem de acabar.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.