Na cena final de Um Circo de Rins e Fígados, espetáculo criado por Gerald Thomas em 2005, o ator Marco Nanini dizia que, como o Brasil, ele era um problema sensacional. “Assim como um belo gol, a mais bela literatura dramática do mundo, a literatura de Nelson Rodrigues. Não há ninguém melhor no mundo. E mesmo ele levou ovo e tomate na cara”, dizia Nanini, convertido em personagem, pouco antes de ser envolto na bandeira brasileira.

Passaram-se quase duas décadas para que Thomas, encorajado, dialogasse com a obra do maior dramaturgo brasileiro, o autor de, entre outras peças, Doroteia, a farsa irresponsável sobre a maldição do amor e da beleza. F.E.T.O. (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada) estreia nesta quarta, 27, no Teatro Anchieta – Sesc Consolação, em uma releitura inventiva do encenador sobre o texto escrito em 1949, que ganhou direção de Zbigniew Ziembinski no ano seguinte, com a atriz Eleonor Bruno no papel-título.

Calejado pelas polêmicas, Thomas não as teme. Pelo contrário, até as provoca – e escalou o ator Rodrigo Pandolfo para interpretar sua Doroteia. “É um espetáculo de contrastes, como beleza e feiura, céu e inferno, bem e mal, e todo mundo sabe que patrulhas não funcionam comigo”, avisa.

Doroteia é uma prostituta, de aparência destoante das mulheres da família, todas esquisitas e recalcadas. Com a morte do seu filho, ela volta para a casa de Dona Flávia (representada por Fabiana Gugli), a tia, em busca da purificação dos seus pecados. “Fiquei impressionado como o Gerald exige que estejamos com a cabeça e o coração abertos – e como tudo se encaixa e faz sentido no final”, diz Pandolfo, estreante no universo do diretor.

PONTO DE PARTIDA

Thomas, no entanto, trata de avisar que a obra de Nelson é só um ponto de partida e, mesmo que conserve pontos cruciais, realizou uma livre adaptação, que ainda cruza com referências de dois artistas plásticos. São elas as pinturas Nu Descendo a Escada, do francês Marcel Duchamp (1887-1968), e No Vento e na Terra I, do brasileiro Iberê Camargo (1914-1994). “É um estudo estético sobre a peça, que de tão rica pode render espetáculos futuros ancorados em reflexões filosóficas e sobre o tempo”, projeta.

Veio da tela de Iberê, que mostra um corpo pequeno e assexuado morto no chão, a inspiração para o título em uma conexão com a personagem Das Dores (papel da americana Lisa Giobbi, também responsável pela direção coreográfica). “Em uma conversa por WhatsApp, na pandemia, Fernanda Montenegro me disse que o Brasil é um feto que não consegue nascer e, assistindo a um documentário sobre Iberê, pensei em todas essas discussões sobre o direito ao aborto e a sabedoria desse comentário dela”, conta ele.

REINVENÇÕES

Além de Doroteia, Dona Flávia e Das Dores, as personagens Maura (vivida por Ana Gabi), Carmelita (Raul Barretto) e Dona Assunta da Abadia (Beatrice Sayd) completam o núcleo resistente à liberdade criativa da nova montagem. Mesmo diante das reinvenções, o encenador reafirma o respeito da investida rodriguiana. Afinal, Doroteia é uma peça dissonante em meio à dramaturgia do autor e o persegue há quatro décadas.

Em 1986, ele tentou levá-la ao palco protagonizada pela atriz Beth Goulart, neta de Eleonor Bruno, mas não obteve a liberação dos direitos autorais pela família Rodrigues. “Resolvi fazer Electra Com Creta em seguida, que foi muito melhor para mim”, observa. “No começo de 2000, trabalhei em uma adaptação de Vestido de Noiva, batizada de Corpo de Alma, para a Fabiana Gugli, mas não fomos adiante.”

Fabiana conta que Thomas enfrentou um embate com o original nos ensaios – até porque, como ele mesmo definiu, com exagero ufanista, se trata da mais bela literatura dramática do mundo. “O texto literal de Doroteia, depois de passar por esse liquidificar, a gente fala muito pouco, mas, no palco, será visto o Nelson preservado em cima de fragmentos”, explica. Para a intérprete, Nelson e Thomas são artistas de uma mesma natureza, alinhados pela irreverência, o gosto pela polêmica e a busca pelas contradições humanas. Thomas não nega que exista uma afinidade com o estilo de Nelson e, cogitando para o futuro uma versão de O Beijo do Asfalto, inclui o autor entre seus pilares criativos. “Acho que proponho uma visão tropicalista do Nelson, assim como experimentei com o artista plástico Hélio Oiticica e o poeta Haroldo de Campos”, conclui.

F.E.T.O.

Teatro Anchieta – Sesc Consolação.

Rua Dr. Vila Nova, 245.

Estreia 4ª (27).

4ª a sáb., 21h. Dom., 18h

R$ 50 e R$ 25. Até 28/8

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.