BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Ministério da Saúde comprou, a partir de 2016, ao menos 1 milhão de litros de um inseticida para o mosquito da dengue que acabou rejeitado pelos estados –que o consideraram impróprio para uso–, acumulou nos estoques, perdeu o prazo de validade e, segundo a própria pasta, causou prejuízo milionário, ainda em apuração.

O resultado do imbróglio que há dois anos envolve o ministério, a Opas (Organização Pan Americana da Saúde) e a Bayer, que forneceu o produto, é que estados e municípios Brasil afora estão sem o único inseticida usado atualmente para matar o mosquito Aedes aegypti adulto, em meio a uma das piores crises de dengue dos últimos anos.

Apesar dos problemas relatados desde janeiro de 2017, a SVS (Secretaria de Vigilância em Saúde) do ministério, já no governo Jair Bolsonaro (PSL), pediu estudo para estender o prazo de validade de 300 mil litros que venceram, a fim de continuar distribuindo aos estados o material.

Relatórios de órgãos estaduais e do próprio ministério obtidos pela reportagem apontam que o inseticida empedra, cristaliza e danifica as máquinas que fazem o “fumacê”, exigindo custos altos de manutenção. Galões vazam e estouram.

Entre o final de 2018 e fevereiro deste ano, a Bayer recolheu uma pequena parte, equivalente a 105 mil litros que estavam nos armazéns do ministério, e se comprometeu a trocá-la. A substituição, porém, está prevista para a partir de junho –quando costuma haver queda dos casos de dengue. Não há definição sobre o material restante.

A negociação para compra começou na gestão Dilma Rousseff (PT) e foi fechada no governo Michel Temer (MDB). Foi feito um termo de cooperação com a Opas para adquirir 1,65 milhão de litros de malathion sem licitação.

A compra sem licitação é possível quando se justifica a urgência –à época, havia um surto de zika no país.

O valor total, conforme ajuste de 2017, era de US$ 50,4 milhões (hoje, R$ 204,6 milhões). O montante seria pago à Opas, que o repassaria à Bayer.

As informações desencontradas começam aqui. O Ministério da Saúde afirma, em nota, que adquiriu 981 mil litros por US$ 10,4 milhões (R$ 42,4 milhões). A Opas informou que recebeu US$ 20 milhões (R$ 81,2 milhões).

Já a Bayer, também em nota, afirmou que em 2016 a Opas adquiriu dela 1,65 milhão de litros –o total previsto– “e repassou ao Ministério da Saúde brasileiro praticamente todo esse estoque”. Confrontado, o ministério reiterou que só tem registro de entrega e pagamento de 981 mil litros.

“Havia uma pressão muito grande para comprar malathion. Eu assumi com uma compra em andamento. Mandei suspender [parte dela] porque havia um estoque enorme nos estados”, disse o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), ex-ministro da Saúde no governo Temer. “Que o produto estava com problemas estou sabendo agora.”

Os últimos lotes dessa megacompra vencem até setembro. Profissionais ouvidos sob condição de anonimato disseram que, se o contrato se arrastar até lá, os fornecedores poderão se eximir de eventual troca ou ressarcimento, pois não serão mais responsáveis.

Estender o prazo de produtos vencidos é uma prática admitida quando eles estão em boas condições, o que não é o caso, segundo relatórios.

Até abril, o país registrava 451 mil casos de dengue, com sete estados em epidemia.

A extensão do prazo de validade vai na contramão do recomendado pela gestão anterior. Um parecer de 21 de novembro sobre 85 mil litros que estavam para vencer dizia: “não concederemos a extensão do prazo de utilização a estes lotes, estando todos eles impróprios ao consumo”.

Ainda que o parecer se refira a lotes diversos, relatórios indicam problemas em praticamente todos os entregues em galões de 200 litros, o que é corroborado pelo ex-chefe da SVS, Osnei Okumoto, antecessor de Oliveira.

Em maio de 2018, o malathion vazou no depósito do ministério, o que o fez pedir à Opas recolhimento por “risco de tragédia ambiental e à saúde pública”, informou o documento. Só parte foi retirada.

Questionado sobre por que sua gestão não trocou o produto, Okumoto respondeu que a Bayer disse que o faria no final do ano, o que não aconteceu. “Foram nos enrolando, dificultando as coisas.”

Em nota, a empresa responsabilizou o armazenamento. “Eventuais problemas decorrem de condições inadequadas, como sujeição a temperaturas excessivas e armazenamento a céu aberto”, afirmou.

“Eles estão se defendendo, mas não procede”, rebateu o ex-gestor. Documentos de inspeções nos estados apontam armazenamento regular.

Além dos 300 mil litros que o ministério informa que expiraram, a estimativa é que quantidade maior tenha vencido nos estados.

Em outubro, levantamento apontou que ao menos 20 estados tinham lotes com problemas ou vencidos.

Enquanto parte do produto vencia, o país passou a lidar com o avanço da dengue e a falta do inseticida. É o caso de Bauru (SP), com 19 mil casos da doença.

Empresa diz que material foi guardado incorretamente O diretor do departamento de vigilância de doenças transmissíveis do ministério, Júlio Croda, confirmou os testes para extensão da validade do inseticida. Questionado sobre a qualidade, Croda respondeu que o objetivo, na verdade, é trocar todo o material. 

Croda disse que estuda processar os fornecedores. Para ele, o fato de a Bayer ter aceitado trocar 105 mil litros demonstra que ela admite que o produto tem problemas.

A Bayer negou. Afirmou que as alegações de que o produto, chamado comercialmente de Komvektor 440EW, empedra e estraga máquinas “não indicam defeito e inadequação”.

“O Komvektor tem por natureza aumentar o seu grau de viscosidade e decantar quando não utilizado por certo tempo. Antes de utilizar o produto, cumpria aos responsáveis pela sua aplicação agitar e misturar de forma a obter a consistência adequada.”

Disse também que “apenas concordou em substituir os 104.800 litros do produto em atitude colaborativa de forma a contribuir com as autoridades de saúde pública”.

A empresa destacou que os lotes entregues em 2016 e 2017 foram “recebidos, testados e aceitos pelo Ministério da Saúde sem ressalvas” e que houve falhas no armazenamento.

Por fim, afirmou que não produz o Komvektor, apenas o distribui. O inseticida é fabricado na Dinamarca pela FMC/Cheminova.

A Opas afirmou que o Ministério da Saúde só avisou dos problemas “em alguns tambores” em abril de 2018.

A organização afirmou que aguarda novos resultados de testes em produtos vencidos.