SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O vereador Fernando Holiday (DEM) apresentou na Câmara Municipal de São Paulo no fim de maio um projeto de lei que permite a internação psiquiátrica de mulheres grávidas, após laudo médico que ateste uma “propensão ao abortamento ilegal”, baseado nas “condições sociais e psicológicas” da paciente, para impedi-la de realizar o procedimento.


O PL 352/2019 também dificulta o aborto ao propor que ele só poderá ser feito com alvará expedido por autoridade judiciária e submetido à Procuradoria-Geral do Município para, se entender que é o caso, oferecer recurso para suspender a decisão. E, mesmo com os papéis autorizando, a mulher deve esperar mais um prazo de 15 dias, segundo o texto.


Nesse período, ela vai passar obrigatoriamente por atendimento psicológico para dissuadi-la da ideia de realizar o aborto e um exame de imagem e som “que demonstre a existência de órgãos vitais, funções vitais e batimentos cardíacos”, além de uma “explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto”.


Hoje, a mulher não precisa de autorização da Justiça e não há período de espera para a realização do aborto legal, que só é feito nos casos em que houve violência sexual, o feto é anencéfalo ou há risco para a vida da gestante. 


O jornal Folha de S.Paulo mostrou que São Paulo é referência no país em atendimento a vítimas de violência sexual. Pacientes de outros estados procuram o hospital Pérola Byington para interromper a gestação, embora esse tipo de atendimento seja obrigatório em todos os hospitais do SUS. Em média, 40% dos pacientes do hospital paulistano são de fora da capital.


Segundo o projeto do vereador, para coibir o aborto, as mulheres também devem passar por atendimento religioso, no qual receberão orientações sobre a “desnecessidade” da interrupção porque há a possibilidade de o recém-nascido ser levado para a adoção e a “existência de vida a partir da concepção”. Caso a mulher seja ateia, ela receberá aconselhamento bioético sobre o tema.


O texto também muda a lei municipal de 2015, que institui a política de saúde sexual e reprodutiva nas escolas da rede pública.


Se aprovado, os alunos deverão assistir áudio e vídeo que “demonstrem a existência de batimentos cardíacos e outros sinais vitais no embrião” e exposição das “técnicas de abortamento, com ênfase na reação adversa do feto”. Os estudantes terão ainda orientação religiosa sobre a “bioética do abortamento”.


Para Maíra Zapater, professora de direito penal da FGV (Fundação Getulio Vargas), a proposta é inconstitucional pois não é competência da Câmara legislar sobre o assunto. “O aborto, nos três casos em que não é crime, não precisa de alvará judicial, atendimento psico-social. É um direito da mulher, sem qualquer uma das imposições, e não cabe a uma lei municipal criar uma hipótese não prevista em lei federal”, afirma.


Para Zapter, o texto também não pode obrigar alguém a se submeter a atendimento religioso e vai contra outra lei federal, a antimanicomial, de 2001, que estabelece direitos das pessoas com transtorno mental. “As únicas hipóteses em que uma pessoa pode ser internada são voluntariamente, involuntária com pedido da família, e compulsória, determinada pela Justiça. Nenhuma delas pode ser adotada para o que o vereador pretende: impedir uma mulher de abortar”, diz. 


Yuri Sahione, advogado e professor especialista em direito penal, vê outros dois pontos inconstitucionais no texto. Um deles é a previsão de que a Procuradoria-Geral do Município recorra da decisão judicial. “Só o Ministério Público poderia recorrer de uma ordem deste tipo e também não cabe ao vereador determinar que uma decisão judicial não seja cumprida enquanto ainda há recurso.”


Segundo Sahione, os direitos civis e penais, como é o caso do aborto, são de competência da União e, portanto, não podem ser alterados no legislativo municipal. “Essa determinação afeta o processo penal e só quem pode legislar sobre matéria penal é a União, o Congresso”, afirma. 


No ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) fez uma audiência pública com representantes de setores favoráveis e contrários à descriminalização do aborto para ajudar os 11 ministros da Corte a formar sua convicção para analisar uma ação ajuizada em 2017 pelo PSOL. 


A ação pede para o STF excluir do âmbito de incidência de dois artigos do Código Penal os abortos voluntários que forem feitos nas primeiras 12 semanas de gestação. Em discussão estão os artigos 124, que criminaliza a mulher (detenção de 1 a 3 anos), e 126, que criminaliza quem provocar o aborto (pena de 1 a 4 anos de reclusão), incluindo profissionais de saúde.


O Código Penal é de 1940. A ação sustenta que esses artigos violam, entre outros, os direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à saúde e ao planejamento familiar. Ainda não há data para o julgamento pelo plenário.


Este ano, o debate contra o aborto ganhou força em Brasília. Em fevereiro, o Senado desengavetou uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que proíbe o procedimento em qualquer situação. Apresentada em 2015 pelo ex-senador Magno Malta (PL-ES), a proposta voltou à CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Casa, onde deve ser analisada neste segundo semestre.


De acordo com a pesquisa Datafolha divulgada em janeiro, 4 em cada 10 brasileiros acham que o aborto deve ser proibido em qualquer situação, mesmo nos casos que hoje são permitidos em lei. O levantamento mostrou que 46% dos brasileiros acreditam que mulheres estupradas que engravidarem devem receber ajuda financeira para ter o filho.


Nos EUA, o aborto foi legalizado por uma decisão de 1973 da Suprema Corte. No entanto, nos últimos anos, estados têm adotado legislação própria sobre o procedimento e muitos têm aprovado leis cada vez mais restritivas, tornando o aborto praticamente ilegal. A manobra é possível devido ao federalismo americano.


Ao menos quatro estados criaram leis que vetam o aborto após períodos de até seis semanas de gestação –que é quando um exame ultrassom é capaz de detectar o batimento cardíaco do feto.