SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos anos seguintes qualquer menção a gênero seria retirada de planos municipais e estaduais de educação. As supressões foram lembradas no texto de um abaixo assinado feito em 2017 contra a presença no Brasil da filósofa americana Judith Butler, referência nos estudos de gênero.

Foi também em 2014 que os filhos políticos do capitão reformado apresentaram, no Rio de Janeiro, os primeiros projetos de lei para criar o projeto Escola sem Partido. Flavio Bolsonaro fez a proposta na Assembleia Legislativa, e Carlos Bolsonaro, na Câmara.

Os textos se posicionam contra a suposta doutrinação e preveem veto a conteúdos “que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais”.

A iniciativa da família Bolsonaro impulsionou o Escola sem Partido, movimento criado em 2004 para combater uma suposta doutrinação de esquerda, e que também atingiria livros didáticos. Educadores veem uma tentativa de censura, além de risco de limitação do papel da escola na formação de alunos críticos.

No site do movimento, há modelos de projetos de lei a serem replicados. Até abril, havia o registro de pelo menos 91 apresentados em Câmaras e Assembleias com o mesmo teor, segundo reportagem da revista Gênero e Número. Outro projeto avança no Congresso Nacional, capitaneado pela bancada evangélica.

Segundo Fernando Penna, da Universidade Federal Fluminense, os defensores do projeto perceberam que ganhariam atenção incluindo também o combate à “ideologia de gênero” em sua pauta.

Uma proibição específica à palavra “gênero” aparece pela primeira vez em texto apresentado em 2015 no Senado.

“Muita gente acha que o Escola sem Partido pautou o tema, mas é o contrário. Ele cresce quando acha esse filão”, diz Penna. “A questão tem sido usada como ferramenta política de manipulação do pânico moral”. Cunhado em 1972 pelo sociólogo Stanley Cohen (1942-2013), o conceito de pânico moral define uma reação baseada na percepção falsa de que o comportamento de um determinado grupo, em geral minorias, representa uma ameaça para a sociedade.

O vice-presidente do Escola sem Partido, Bráulio Matos, concorda que a absorção mais efetiva do tema conferiu ao movimento um “destaque extraordinário”. Para Matos, a “ideologia de gênero” significaria uma erotização precoce, sem consentimento da família e promovida pelo Estado.

“A discussão está ligada a movimentos que querem, assim como no âmbito político, usar a sala de aula para agendas específicas”, diz ele, que é professor da UnB e fundou a iniciativa ao lado do advogado Miguel Nagib. Ambos são católicos e se conheceram pouco antes de 2004 em eventos no Instituto Liberal de Brasília.

“O problema que o movimento levanta é a distinção entre liberdade de expressão, fora da aula, e liberdade de ensinar”, diz ele, que defende sua constitucionalidade.

Em março de 2017, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso suspendeu, em decisão liminar, lei que criava o programa em Alagoas. Parecer do Ministério Público Federal classificara a iniciativa como inconstitucional por, entre outros itens, impedir o pluralismo de ideias, negar a liberdade de cátedra e ir contra a laicidade do Estado.

Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC, em SP, ressalta que os impactos dessa campanha já ultrapassaram discussões legislativas. “Há outra questão que é inocular autocensura, medo e sensação de extrema vigilância dentro da escola.”

Cassio faz parte da Rede Escola Pública e Universidade, que prepara um manual de defesa de professores. Já houve caso, por exemplo, de um professor de Campinas (SP) suspenso por usar saia em um ato fora da escola, em 2016.

No início do mês, um docente de história em Natal foi ameaçado de morte após o pai de um aluno entender como ataque político uma explicação sobre a Lei Rouanet. Uma escola tradicional do Rio proibiu, no início do mês, um livro considerado comunista por pais (a obra “Meninos Sem Pátria” retrata vida de uma família exilada na ditadura).

A escola municipal Desembargador Amorim Lima, no Butantã (zona oeste de SP), recebeu em 2016 notificação judicial de um vereador para cancelar um evento que discutiria questões de gênero.

“Fizemos do mesmo jeito, avisamos a secretaria e escrevemos uma carta. Os pais que tinham dúvida sobre o assunto vieram nos debates e entenderam do que se tratava”, diz a diretora, Ana Elisa Siqueira.

O secretário municipal de Educação de São Paulo, Alexandre Schneider, quase deixou o cargo em 2016 depois que se opôs a uma blitz feita em escolas por um vereador ligado ao MBL (Movimento Brasil Livre). O então prefeito João Doria (PSDB), agora candidato ao governo de SP, manteve-se alinhado ao MBL.

Outro foco de atuação são as discussões curriculares em curso. Após pressão, o governo Michel Temer (MDB) retirou, em 2017, ao menos dez menções a gênero da versão final da Base Nacional Comum Curricular, que define o que os alunos devem aprender.

A ausência desse item dificulta a criação de programas de formação de professores para questões que, dizem os educadores, já são levadas à escola pelos alunos.

O programa de governo de Bolsonaro prevê o objetivo de lutar contra a sexualização precoce e defende que “um dos maiores males atuais [da educação] é a forte doutrinação”. Ele já deu entrevistas gravadas em que afirma ser homofóbico. Procurada, a campanha não respondeu as perguntas da reportagem.

A Arquidiocese de SP também não quis se pronunciar.