SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para cortar a cabeça de um vampiro, recomenda-se o uso de um facão Kukri. Já para perfurar o coração do monstro, uma boa pedida é uma faca Bowie.


A tarefa requer esforço físico, mas, se realizada da forma correta, a morte é garantida. Para resultados mais satisfatórios, é recomendável que ambas as facas sejam usadas simultaneamente. Na cultura popular, no entanto, os vampiros não morrem nunca.


Prova disso é o recém-lançado “Dracul”, escrito por J.D. Barker e Dacre Stoker -este último, sobrinho-bisneto de Bram Stoker, autor do romance gótico de 1897 “Drácula”.


O livro de 2018 é uma espécie de biografia ficcionalizada do criador do vampiro mais icônico de todos os tempos. 


Funciona como uma prévia da história do casal Harker e do doutor Van Helsing. Mina Harker tem uma breve participação na trama -a personagem fictícia chega a contracenar com Bram Stoker. 


Há também menção à origem da escolha do nome do conde da Transilvânia, que originalmente se chamaria Wampyr.


“Dracul” emula a mesma estrutura de romance epistolar de “Drácula”, em que a narrativa é construída a partir de uma emaranhado de supostas cartas, páginas de diários, telegramas e documentos, com o objetivo de dar um ar de relato real ou jornalístico.


“Estou bem convencido de que, sem sombra de dúvidas, os acontecimentos aqui descritos realmente ocorreram, por mais inacreditáveis e incompreensíveis que possam parecer à primeira vista.”


Esta passagem, que dá início a “Dracul”, foi supostamente tirada do prefácio original do “Drácula” de Bram Stoker. Segundo os autores, uma primeira parte do manuscrito original foi excluída antes da publicação, por ser “assustadora demais”.


Uma nota dos autores, que vem ao final do livro, conta que o editor de Bram na época, após ler o manuscrito, recusou-se a publicá-lo. Ele temia que, caso fosse apresentado daquela maneira realística, o livro provocasse pânico em massa em Londres.


Com a retirada das primeiras 101 páginas da história e algumas outras alterações, o livro pôde ser publicado.


Segundo os autores, foram essas páginas que ficaram de fora que deram origem e nortearam a narrativa de “Dracul”.


Na época, Bram Stoker também fez diálogo com editores de outros países. Na Islândia, o livro foi aceito e editado de forma diferente, dando origem a “Makt Myrkranna”, obra sobre a qual há  referências em “Dracul”. 


Apesar de ter um início semelhante, a versão islandesa tem enredo e personagens diferentes. Uma delas é Dolingen von Gratz, interesse amoroso do vampiro e figura que tem pontos em comum com a Ellen Crone de Dacre Stoker.


A superposição entre fantasia e realidade permeia toda a obra. A história começa com um Bram Stoker ainda criança, com saúde frágil e que quase não saía da cama -o que aconteceu na realidade. 


Porém, na ficção, após uma intervenção de sua babá-vampira Ellen Crone, Bram não somente é curado como praticamente se torna um X-men.


De acordo com o Dacre, uma babá com esse nome de fato trabalhou para a família.


Dacre Stoker é o atual responsável pelo espólio de Bram. O romance “Drácula” é hoje de domínio público e, ironicamente, o manuscrito original pertencia a Paul Allen, cofundador da Microsoft, morto em outubro, que o comprou num leilão.


Mas nada disso impediu o sobrinho-neto de explorar a imagem e a herança literária de Bram de várias maneiras e -por que não?- ganhar dinheiro com isso.


Dacre já escreveu uma sequência de Drácula (“Drácula, o Morto-Vivo”, de 2009), costuma dar entrevistas e fazer aparições em eventos voltados para a comunidade nerd-gótica. 


Também defende empreitadas comerciais montadas na garupa do conde Drácula, como a tentativa de criar a “Vila de Drácula”, uma espécie de Disneylândia vampiresca na Transilvânia inspirada na história de Stoker.


Tanto Dacre quanto J.D. são membros ativos da Associação de Escritores de Horror, que criou o prêmio Bram Stoker, uma homenagem ao tio-bisavô e que premia literatura do gênero. Ao lançar “Drácula, o Morto-Vivo”, Dacre disse que queria “restabelecer o controle criativo” do original.


“Eu queria que um membro da família Stoker estivesse envolvido na escrita e no controle da continuação da história de ‘Drácula’, iniciada por Bram”, disse à reportagem.


O sobrenome Stoker abriu muitas portas e facilitou o trabalho de Dacre. Munidos de histórias da família passadas ao longo das gerações, documentos, manuscritos e o diário de Bram, tentaram construir versões fiéis de pessoas que de fato existiram.


Além de contar com documentos e anotações, ele conseguiu, em 2017, um convite de Paul Allen para dar uma olhada no manuscrito original.


“São muitas as histórias [da família] e muitas delas são privadas. J.D. e eu usamos essas informações privilegiadas para contar as histórias de Bram, Matilda, Thornley, Emily e, claro, Ellen”, conta Dacre.


Os trejeitos e comportamentos desses personagens baseados em pessoas reais dão a entender que possivelmente foram essas pessoas reais que inspiraram alguns dos personagens clássicos de “Dracula”, o livro original do 1897.


É possível fazer paralelos entre Lucy Westenra, a amiga de Mina Harker que é seduzida pelo conde Drácula, com Emily, mulher de Thornley, irmão mais velho de Bram. Inicialmente belas e doces, tanto Emily quanto Lucy se tornam endiabradas, de alguma forma, ao longo de suas vidas.


Thornley, por sua vez, tem a mesma profissão e alguns traços de personalidade em comum com John Seward, jovem médico que cortejava Lucy na ficção. 


Há também um certo Arminius Vambéry, amigo de Bram que existiu na vida real e que alimenta ainda mais rumores de que foi ele quem inspirou o personagem Van Helsing no romance do século 19.


“Drácula” é um clássico que fez escola. Reverbera em tendências na literatura, no cinema, na televisão e no vestuário, mesmo após mais de um século de sua publicação. 


Em 2018, porém, os vampiros não estão exatamente na moda. O barulho criado por livros e filmes de vampiro marcou uma geração de adolescentes no fim da década passada e no início da atual, mas parece ter diminuído.


Sobre isso, Dacre diz: “[A série] ‘True Blood’ e [a saga de livros e filmes] ‘Crepúsculo’ podem ter saído de moda, mas Drácula continua vivendo, imortal, como o próprio conde”.


DRACUL – A ORIGEM DE UM MONSTRO


Preço R$ 64,90 (432 págs.)


Autor J.D. Barker e Dacre Stoker


Editora Planeta