SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Manoel de Barros estudou para ser doutor. Formou-se em direito na capital carioca, mas, em sua primeira audiência como advogado, vomitou em cima do processo.


A cena pode ilustrar a proverbial timidez do autor – certa vez, convidado para uma leitura em um programa de rádio, desmaiou antes de conseguir dizer uma única palavra -, mas também mostra como aquele mundo jurídico e sua retórica solene em tudo diferiam do caminho que Manoel escolheu para si.


O jovem advogado se tornou o poeta das coisas miúdas e construiu uma obra na qual o desimportante importa – por isso, seus livros estão cheios de lesmas, pedras, brejos, pregos enferrujados.


O autor, morto em 2014, agora é tema da Ocupação Manoel de Barros, mostra em sua homenagem realizada pelo Itaú Cultural que resgata seu acervo para exibição. É a primeira vez que parte dos mais de cem de caderninhos de anotações deixados pelo poeta são expostos ao público.


Mesmo como objetos, os cadernos já remetem à obra de Manoel – eram feitos por ele mesmo a partir de restos de papel sulfite, pedaços de cartolina e materiais que reaproveitava. Eles trazem, em caligrafia miúda, desenhos, versos solitários ou reflexões sobre suas leituras de autores como o padre Antônio Vieira, Heidegger e Walter Benjamin.


“Se você pegar dez pesquisadores [para analisar essas anotações], você tem pelo menos uns 15 anos de trabalho. Dá para fazer uns 30 trabalhos sobre”, diz Claudiney Ferreira, gerente no núcleo de audiovisual e literatura do Itaú Cultural e curador.


Para preservação do material, a instituição digitalizou todos os cadernos – a ideia é que seu conteúdo possa ser consultado sem que seja preciso manuseá-los.


O desejo foi iluminar o processo criativo de Manoel. Assim, o público poderá ver, por exemplo, as três versões do poema “A Turma”. Também estão lá os lápis que o poeta usava – sempre até o fim, quando já tinham virado pedaços diminutos – para escrever. Entre os documentos com sua caligrafia, está um papel com a frase “Deus está nos detalhes”, de Guimarães Rosa, e a anotação: “Frase para um poeta botar no quadro e pendurar na sua parede da frente”.


Recluso, o poeta mato-grossense quase não falava a jornalistas. Quando o fazia, era por escrito e à mão. A mostra reúne algumas dessas entrevistas, mas somente com as respostas do autor. “Muitas vezes você vê que ele respondia o que queria, mesmo que não tivesse nada a ver com a pergunta”, ri Ferreira.


Os curadores também distribuíram livros de Manoel por prateleiras no espaço expositivo, para quem quiser conhecê-los ou relê-los. Um dos vídeos exibe cenas inéditas das entrevistas do cineasta Joel Pizzini com o autor, para um filme sobre ele ainda sem data de estreia.


Esses versos com as mãos sujas de terra só ganharam reconhecimento nos anos 1980 – cerca de quatro décadas depois do primeiro livro do autor. Cinco anos após sua morte, a mostra vem reforçar esse processo de canonização.


A exposição também pode ajudar o autor a se livrar de um rótulo, ao trazer bastante material para leitura. Normalmente visto como o poeta do pantanal, Manoel recusava a alcunha – para ele, a poesia deve se ocupar das palavras, não das paisagens. Era somente no abandono que poeta se realizava.