Eles não são mais coloridos pontuais no meio do cinza. Os murais gigantes se multiplicaram por dezenas de empenas cegas (fachadas laterais sem janelas) deixadas em branco desde a Lei Cidade Limpa, que restringiu a publicidade urbana na capital paulista, há quase 15 anos. Mesmo na pandemia, esse segmento vive boom, criando corredores de arte urbana no centro e em trechos da zona oeste. Está também mais profissionalizado e diverso, com produtoras consolidadas, interesse da iniciativa privada e até incentivo público.

Somente ao longo do Minhocão, por exemplo, há 23 murais prontos ou em produção. O número é maior se somado às quadras do entorno, como da Consolação, e bairros visados, como Pinheiros. Pelas dimensões, esse tipo de intervenção exige investimento, inclusive por causa dos equipamentos necessários. E, no caso de projetos em locais mais visados ou encomendados por marcas, há o pagamento do aluguel da fachada. O custo de implantação pode ultrapassar R$ 200 mil.

Na Instagrafite, todos os trabalhos são encomendados por empresas. “A maior parte da demanda é para fazer empena. É um desafio agradar à marca e não ferir a Lei Cidade Limpa”, diz Marcelo Pimentel, um dos sócios. Para ele, o investimento privado pode ter retorno à cidade, se bem feito. Cita o exemplo de um mural com a imagem de artistas transgênero que motivou comoção ao ser apagado após o fim do contrato.

“O Minhocão virou um leilão de prédios”, comenta ele, que organiza um festival de arte urbana na Vila Leopoldina, zona oeste, inspirado na iniciativa que transformou o bairro de Wynwood, de Miami (EUA), em atração turística.

Por vezes, essa aproximação entre arte e indústria causa conflitos. Em 2019, dois casos chamaram a atenção: o do produtor que iniciou um movimento para impedir o apagamento de um mural após o fim do contrato e a pintura de uma fachada sem autorização do dono.

Em dezembro, empresas foram autuadas pela pintura de duas empenas com personagens de videogame, com multas somadas de mais de R$ 1 milhão. Na Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU), órgão municipal que legisla sobre anúncios em espaços públicos, denúncias sobre empenas não são incomuns, e envolvem ainda projeções irregulares.

Entre as empresas, o discurso é de posicionamento de marca e contribuição à cidade. A Fanta, por exemplo, lançou seis murais no Minhocão neste ano criados por personalidades como Carlinhos Brown e Marcia Tiburi. “A marca está em um movimento que a gente traduziu no Brasil como ‘galera com mais cores’. As pessoas que estiverem passando (pela via) vão vivenciar o que a marca acredita”, justifica Pedro Abbondanza, diretor de marketing. A proposta também envolve ações em redes sociais e parcerias com influenciadores digitais.

Outra iniciativa privada foi a da implantação de dois grafites gigantes pela Veloe na Rua da Consolação e na Avenida Rio Branco, também no centro. Ambos têm predominância dos dois tons de azul da empresa. “Tudo o que é do interesse de ir e vir, de mobilidade urbana, tem a ver com o que a gente gosta”, afirma o diretor geral André Turquetto. “No briefing, os artistas tiveram uma integração forte, fizeram um mergulho profundo no DNA da marca. Mas não tem o objetivo de fazer publicidade de marca”, afirma.

Fomento

Também há apoio público no setor. Somente a Prefeitura da capital paulista apoiou 12 novos murais em empenas no ano passado para o que chama de Museu de Arte de Rua (MAR), com investimento de R$ 2,2 milhões em 53 obras (incluindo também muros e outros suportes). Uma nova edição ocorrerá em 2021, com o objetivo de apoiar um “patrimônio cultural da cidade”, segundo o Município.

Um dos selecionados foi o projeto que levou seis artistas a pintar empenas inspiradas em Tarsila do Amaral em paralelo a uma mostra da artista no Masp. “Por mais que a gente soubesse que o museu estaria cheio, milhões nem pensaram em entrar para ver. Pensei em como chegar a mais gente”, lembra Luciana Branca, da hub de comunicação Em Branco, que representa a família da pintora e não tinha experiência anterior com arte urbana. “Entrou no radar para outras ações”, afirma.

Já Pedro Frazão, da produtora Parede Viva, está em processo de implementar cinco murais na capital e no interior, por meio de um edital do Estado. Em 2020, com fomento municipal, organizou a criação de uma obra no centro com a lama espalhada pelo rompimento da barragem de Brumadinho (MG) em 2019. Por ter essa proposta socioambiental, ele diz fazer “artivismo”. “Uso a arte como ferramenta para meus ativismos”, diz.

Exterior e internet

Quem trabalha no meio artístico conta que cinco ou seis anos atrás era até difícil explicar o porquê de fazer um mural. Por vezes, era preciso mostrar fotos de intervenções fora do País e justificar as vantagens, como reduzir custos de manutenção e valorizar o edifício e o entorno.

Hoje, há relatos até de prédios que se oferecem para receber intervenções. Tudo isso em uma cidade com centenas de empenas cegas (fachadas laterais sem janelas, exigidas por legislações de décadas atrás) que ficaram vazias com o banimento de anúncios em 2006.

“Virou um movimento muito maior e mais organizado”, relata o muralista Eduardo Kobra. “São Paulo é uma das cidades com maior concentração em relação até a países de primeiro mundo. Fico surpreso com a velocidade que acontece”, diz.

Embora faça trabalhos autorais, ele costuma procurar patrocínio para as obras, por causa dos custos envolvidos. “Pintar um prédio é diferente de um muro. Precisa de tempo maior, de andaimes, balancins, tem toda uma questão logística. Propor que os artistas banquem isso é muito difícil”, argumenta.

Pesquisador do tema e autor do livro Graffitis em múltiplas facetas, o historiador William da Silva e Silva atribui a maior aceitação à arte urbana à projeção internacional de Kobra, da dupla Os Gêmeos e outros artistas brasileiros. “Passou a aparecer na mídia, virou tema de pesquisas científicas, de artes plásticas, de linguística”, destaca. Um exemplo que dá é o uso de referências à arte urbana até na confecção de roupas, louças e outros produtos. “Muita coisa que tinha antes não deixou de existir, ficou mais amplo, com um braço comercial.”

O suporte também se diversificou, chegando ao mobiliário urbano e outras plataformas, destaca. Nesse aspecto, as empenas oferecem ainda mais visibilidade, pelas dimensões, que permitem serem avistadas a longas distâncias. “Os grafiteiros e as empresas veem nisso a oportunidade de difundir ainda mais sua mensagem.”

Professor de História da Economia na Unifesp e pesquisador de História Urbana, Fábio Alexandre dos Santos pontua também que esse movimento deriva da descriminalização do grafite, há 10 anos. “Acabou incorporado por uma elite econômica e cultural, que percebeu o aspecto artístico, fazendo uma diferenciação com a pichação.”

Além disso, o muralismo cresceu em paralelo às redes sociais, não só tendo um acesso digital a novos públicos, mas se tornando um atrativo também por sua aparência “instagramável”. “Agora, ele não está mais só na cidade, fisicamente, mas no mundo inteiro.”

Para o professor, contudo, é necessário desenvolver políticas públicas no setor para garantir que essas intervenções atendam aos interesses da sociedade, não apenas aos de grandes marcas, que costumam utilizar os murais para veiculação de produtos nas mídias. “Existe hoje uma economia do grafite na cidade, apesar de haver oscilações de acordo com cada prefeito”, afirma Santos.

Regras

– Autorização: a criação de murais em empenas cegas não precisa de autorização prévia municipal em São Paulo, a não ser que ocorra em bens públicos, tombados ou com alguma outra restrição.

– Restrições: as obras que desrespeitarem a legislação podem sofrer sanções e multas, especialmente se apresentarem “referências ou mensagens de cunho ofensivo, pornográfico ou discriminatório”. Também não podem exibir ou fazer referência indireta a nomes, marcas, logos, serviços ou produtos comerciais, o que é considerado uma infração à Lei Cidade Limpa.

– Aval dos proprietários: não são irregulares intervenções que tenham anuência do proprietário ou responsável legal pelo imóvel, ainda que sem prévia aprovação formal de órgão público municipal. A resolução sobre o assunto ainda diz que o proprietário do imóvel precisa liberar a intervenção. Em edifícios residenciais, isso costuma ser decidido em reunião condominial, por voto. Quando for em bem público, é preciso informar o nome dos patrocinadores ou apoiadores.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.