BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – “O Outro Lado da Memória” nasce de um desejo e uma frustração: o desejo, foi o de André Luiz Oliveira (e seu produtor, Marcio Curi) de filmarem, em 2004, a adaptação de “Viva o Povo Brasileiro”, romance em que João Ubaldo Ribeiro busca reencontrar uma história desconhecida da constituição de um povo a partir da sua miscigenação.

Filme de consistência épica, cuja preparação foi toda concluída: a direção de arte, os figurinos, o story board, tudo estava pronto. Os atores já estavam escolhidos e haviam passado por vasto trabalho de preparação. Estava pronto para rodar. E nunca foi rodado.

O que faz “O Outro Lado da Memória” é uma espécie de genealogia desse projeto. É como se desmontasse peça por peça um motor e o alinhasse à nossa frente. Esse motor nunca funcionará, é certo, mas permite imaginar como funcionaria.

Quer dizer, talvez se tivesse sido feito o filme não seria tão bem-sucedido como o documentário (ou semidocumentário, já que algumas partes são reconstituições ficcionais). Não se sabe.

Em compensação, a visão das peças permite a cada um imaginar a grandeza e a beleza do sonho de realizar esse projeto.

O Brasil é pródigo nessas frustrações. Além do caso de Joaquim Pedro com “Casa Grande e Senzala”, existe o de Humberto Mauro, que, conta Walter Lima Jr, morava na casa que seria a de sua “Inocência”. Mauro, sabe-se, presenteou o roteiro a Lima Barreto, que também não chegou a filmá-lo. Só em 1983 Walter Lima pôde fazer o filme. Aliás, belíssimo.

O caso de “Viva o Povo” é diferente. O desejo de filmar “Viva o Povo” converteu-se no desejo ainda mais vivo de entender a frustração de não ter chegado ao fim. André Luiz vai a professores, museólogos, autoridades da época (sim, Gilberto Gil era então ministro; Orlando Senna, secretário do MinC). Revisita os lugares, pessoas envolvidas no projeto, retoma trechos do roteiro.

E o que resulta? Eis talvez onde o filme falha: quando investe um tanto demais na política e atribui a não  realização do filme ao governo baiano da época. Pode ser. Seria mais bonito se, como quase todo restante do filme, afirmasse o mistério e o poético do fracasso. 

Pois o filme é, afinal, uma indagação sobre as coisas que podem acontecer e não acontecem. Que podem se completar e no entanto permanecem incompletas, mas também sobre coisas que acontecem porque, simplesmente, têm de acontecer.

Ou seja: “Viva o Povo” foi planejado para ser o filme da vida de Oliveira. Talvez o filme de sua vida seja “O Outro Lado da Memória”, essa obsessiva busca do diretor por uma resposta que provavelmente não exista. E que resulta tão mais forte porque o povo brasileiro é, também ele, uma incompletude, uma impossibilidade, uma civilização que está por fazer, suspensa entre o finalmente existir e o nunca ser. Como o cinema brasileiro, diga-se.

Também a notar, o surpreendente curta brasiliense “Aulas que Matei”: humor, narrativa forte, boa construção dos planos e personagens, capacidade de síntese, simplicidade, quase despretensão –no sentido saudável do termo. Muito a esperar dessa dupla de realizadores (Amanda Devulsky e Pedro B. Garcia) que fez tanto muito recursos bem limitados.

Já o esperado “Ilha”, de Ary Rosa e Glenda Nicácio (os mesmos de “Café com Canela”) compõe-se de uma mistura de metalinguagem tipo anos 1960, dialogação grandiloquente, mistérios enunciados e depois perdidos (a mulher cega), um bom personagem (o pai) desaproveitado. Em resumo: decepcionante.

Outro Lado da Memória 

Direção: André Luiz Oliveira. Brasil, 2018.