Sabe aqueles planos de academia que você divide em 12 vezes, vai três vezes na primeira semana – no máximo –, e compra 11 meses e três semanas de culpa? Então, esse não era o caso de Júlia. Ela frequentava o lugar – ou melhor, os lugares – diariamente. Os lugares porque esse era um daqueles pacotes que incluem várias academias diferentes espalhadas pela cidade. E como Júlia trabalhava com vendas e vendia um produto muito particular com alta demanda, ela dificilmente dormia, acordava e malhava no mesmo bairro. Ocorre que, embora trabalhasse muito, tanto na academia quanto fora dela, a vida financeira da moça andava mal das pernas. Para ser mais específica, andava exatos nove mil Reais negativos mal das pernas.
Culpa das pernas e pés inclusive. As pernas e suas massagens, saias, sapatos. Culpa do corpo todo, cheio de “eu pre-ci-so”. Enfim… Era esse o tema que ocupava Júlia enquanto ela se dirigia para a esteira da academia da vez, quase atropelou a moça dos quatro apoios no caminho, preocupada que estava com os débitos automáticos que encontrariam portas fechadas na conta corrente hoje mesmo, quinto dia útil do mês. Escolheu a última fileira, esteira do cantinho para não precisar conversar com ninguém. Antes mesmo de pisar no equipamento avistou o improvável. No espaço reservado para a garrafa d’água, repousava uma possibilidade.
Um iPhone 11 pro, verde meia noite – e é esse mesmo o nome da cor . Ela tinha pesquisado ontem, antes de checar a mega – sempre acreditou mais do que deveria na mega. Reconheceu à primeira vista. Se tivesse 512 GB de capacidade – “e provavelmente tinha”, inventou – custa nove mil, quinhentos e noventa e nove Reais. Juro! Sobrariam ainda quinhentos e noventa e nove. São pelo menos mais cinco meses de academia, ou cinco massagens, quem sabe seis, se tiver desconto no dinheiro. Pegou e colocou no bolso do casaco, sem nem pensar. “Meia horinha de esteira e vou daqui direto para a Santa Efigênia vender o danado”.
Mas quanto será que pagariam lá? E meia hora é muito tempo, tempo para o dono dar falta do telefone. Vou agora mesmo. Desligou a esteira de supetão, quase tropeça, simulou uma marcha atlética para não correr até a saída. Já estava cruzando a porta, quando foi parada pelo instrutor. “Sem treino hoje?”. Ela nem olhou para trás, empurrou o instrutor com toda a força que não usou no treino e correu sem atentar para o sinal que fechara. Só deu tempo de ouvir a última buzina da vida curta de vinte e poucos anos. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. Mentira, desculpa.
Ela olhou simpática, e disse que precisaria sair para uma emergência. “Até amanhã”, atravessou e segurou o telefone fingindo atender uma ligação. O menino que passava de bicicleta, custou a acreditar na própria sorte, de uma mãozada só, pôs em prática o ladrão que rouba ladrão. Já pensou?
Na verdade, ela saiu mesmo correndo sem olhar pra trás e quando pôs a mão no bolso, para checar se era tudo verdade, deixou cair, espatifadíssimos, nove mil, quinhentos e noventa e nove Reais no asfalto quente.
Foi isso não. Ela devolveu o telefone na recepção e, em segundos, sentiu na cabeça uma chuva de papel picado, surgiram câmeras debaixo da bancada, detrás dos equipamentos, microfones e entrevistas. Acabara de participar de um quadro surpresa do fantástico sobre a honestidade resistente dos brasileiros. Não, triste demais.
“Oi desculpa, você viu um celular que estava aqui?”
“Eita, acabo de colocar no bolso para devolver na recepção. Olha lá por onde deixa essa belezinha”. Foi isso. Puxa vida, Júlia.
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