Divulgação – Joaquin Phoenix como o Coringa: ele brilha ao transitar com facilidade de uma figura patética a uma criatura ameaçadora

Todd Philips, diretor de cinema conhecido pela franquia de comédias ‘Se Beber, Não Case!’, deu uma declaração interessante e polêmica sobre ‘Coringa’, filme que ele dirigiu e que estreia nesta quinta-feira (3) em Curitiba. Segundo ele, o longa, sobre a origem do icônico vilão do Batman, não é baseado em nada do que foi feito nas histórias em quadrinhos. Isso é bom. Afinal, nenhuma HQ foi tão a fundo quanto este filme para desvendar a origem do personagem. Com tal declaração, Philips planejava que os fãs mais radicais de HQs não ficassem reclamando de eventuais soluções criativas no filme.

Afinal, ‘Coringa’ é, sim, baseado nos quadrinhos. Passa-se em Gotham City. Entre os personagens que aparecem no filme estão Bruce Wayne, ainda com 8 anos, e Thomas Wayne, pai de Bruce, que um dia será morto a tiros – é esse acontecimento que levará o jovem Bruce a se tornar o Batman. Philips, além disso, bebe em duas fontes: as HQs ‘A Piada Mortal’, a que mais esmiúça a origem do Coringa, e ‘O Homem que Ri’, que explora as primeiras ações criminosas do personagem.

Nos quadrinhos, o Coringa é um criminoso insano. E afirma que a diferença entre sanidade e loucura é apenas “um dia ruim”. No filme, o homem que virá a ser o Coringa, Arthur Fleck (interpretado por Joaquin Phoenix), vive um dia ruim após o outro. Ao mesmo tempo em que sonha ser um comediante, ele trabalha como palhaço-figurante. E decididamente não é um cara feliz. Ex-interno no asilo Arkham, ele tem um distúrbio que faz com que ele solte gargalhadas em momentos de tensão. Ele precisa visitar o serviço social uma vez por semana e toma sete tipos de remédios para problemas neurológicos. Além disso, mora com a mãe, Penny Fleck, uma senhora que sonha com o dia em que Thomas Wayne vai salvar todos da condição degradante em que vivem. Nessa época, pelos idos dos anos 80, Gotham City não é apenas violenta, mas também imunda; sacos de lixo se acumulam sem que a prefeitura faça alguma coisa, o que enfurece a população nas áreas menos abastadas. Pobre e esquisito, Arthur é invisível para a sociedade. Só é visto quando está para ser humilhado.

Mesmo nesse cenário, Fleck tenta levar a cabo o ensinamento da mãe, de sempre sorrir. Mas ele vive um dia ruim após o outro, certo? Num dia, ele é vítima de agressões nas ruas. Em outro, acaba ganhando uma arma de um colega de trabalho, para se defender de futuras agressões. Em um terceiro, acaba demitido. Para piorar, seu distúrbio de gargalhadas o coloca em situações constrangedoras ou, pior, de risco de violência. Em uma delas, o personagem cruza a tal linha entre sanidade e loucura. Para nunca mais voltar.

Ao dizer que seu Coringa não se baseava em quadrinhos, Todd Philips entrega um personagem de HQ diferente de tudo que havia sido feito para o cinema até então. E o diretor consegue, ao mesmo tempo, entregar e sonegar a origem do personagem. Joaquin Phoenix não é um Coringa brincalhão como Cesar Romero (no seriado e nos filmes dos Batman dos anos 60). Também não é transformado em vilão após cair num tanque de substâncias químicas como Jack Nicholson (no ‘Batman’ de 1989). Nem faz planos para transformar Gotham City num caos como Heath Ledger (em ‘O Cavaleiro das Trevas’ de 2008). Nem faz uma figuração perdida e descartável como Jared Leto (em ‘Esquadrão Suicida’, de 2016). O Coringa de Phoenix às vezes dá pena, às vezes até gera empatia. E ele brilha ao transitar com facilidade do patético ao ameaçador. Mas fica bem claro: o Coringa é um vilão perigoso e imprevisível (e por isso ainda mais perigoso). É exatamente isso que deixa o filme tenso e denso. Não há o colorido dos filmes da Marvel ou uma motivação vilanesca à la Thanos. A crueza de ‘Coringa’ choca. Seu maior paralelo, se é que dá para dizer isso, seria o filme ‘O Rei da Comédia’, em que um comediante fracassado comete um crime e, assim, chama a atenção da sociedade – coincidência ou não, Robert De Niro, o ator fracassado de ‘O Rei da Comédia’, está do outro lado da cena em ‘Coringa’.

‘Coringa’ foi muito bem recebido nos primeiros festivais de cinema. Chegou a receber o Leão de Ouro, prêmio máximo no Festival de Veneza. Certamente não foi por ser um filme de HQs, e sim por ser um filme com ferozes críticas psicológicas e sociais. Nas entrelinhas, ‘Coringa’ retrata a invisibilidade de quem precisa de ajuda psicológica e ataca o posicionamento pusilânime de autoridades políticas em relação aos menos favorecidos. Os dois fatores estão sempre sujeitos a fomentar revoltas populares, principalmente se combinados entre si. Daí o fato de que loucuras como as do Coringa, ainda que descaradamente criminosas e perigosas, acabam tendo cada vez mais seguidores. Um retrato de uma sociedade que cada vez menos consegue conviver com ela mesma.

Outros Coringas no cinema

Cesar Romero
(‘Batman’, 1968)
A versão mais “palhaça” do personagem na série de televisão dos anos 1960, que teve um filme em 1968. O humor pastelão era a sua força (mas os fãs não perdoam o bigodinho coberto).

Jack Nicholson
(‘Batman’, 1989)
Antes de se tornar o Coringa, ele era um gangster, chamado de Jack Napier —e que matou os pais de Bruce Wayne. O carisma do ator fez com que o personagem virasse Jack Nicholson brincando de ser Coringa.

Heath Ledger
(‘O Cavaleiro das Trevas’, 2008)
Um Coringa como deve ser: insano, misterioso, anárquico e absolutamente imprevisível, inclusive nas suas escolhas. O ator, morto em 2008, ganhou um Oscar póstumo pelo papel.

Jared Leto
(‘Esquadrão Suicida’, 2016)
Uma versão contemporânea do personagem, todo tatuado e com dentes de metal. De tão dissonante da essência do personagem, tornou-se dispensável.