CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Numa das primeiras sequências de “O Traidor”, filme que concorre à Palma de Ouro no Festival de Cannes, o cineasta italiano Marco Bellocchio intercala cenas de gângsteres assassinados um a um nas ruas da Sicília a trechos de um batizado num casarão do Rio de Janeiro.


 A referência a “O Poderoso Chefão”, mais famosa saga de máfia da história do cinema, é só um jogo com o espectador. Pois embora o diretor esteja mergulhado naquele mesmo mundo de metralhadoras, códigos de honra e beija-mão em padrinhos, sua obra está mais para um comentário político do que para um retrato romantizado sobre a criminalidade.


 Aliás, mais do que um retrato da máfia, é um retrato de um mafioso em particular, Tommaso Buscetta e as motivações que o levaram a se tornar o mais famoso dos “pentiti”, os arrependidos que colaboraram com a Justiça italiana e delataram os seus antigos comparsas da organização Cosa Nostra.


O caso dele ficou bem conhecido no Brasil porque foi nesse país que ele achou refúgio, se casou e acabou preso e extraditado. “O Traidor” explora essa sua passagem e o seu casamento com Cristina, brasileira que nas telas ganhou a pele de Maria Fernanda Cândido num papel grande na trama.


 (Trajando um longo e brilhoso vestido bordô, a atriz foi o grande destaque do tapete vermelho, com as câmeras ao vivo nunca deixando de acompanhar os seus passos rumo à escadaria do cinema)


 O longa mostra como Buscetta, interpretado por Pierfrancesco Favino, foi torturado pela polícia na época da ditadura militar assim que sua identidade foi descoberta. Na vida real, ele morou em São Paulo, mas para efeitos mais cinematográficos, sua casa na história acabou virando uma mansão no alto de Santa Teresa com vista para a baía de Guanabara.


 O filme de Bellocchio é uma coprodução da Itália com o Brasil, aqui tocada pela produtora paulista Gullane Filmes. Junto a “Bacurau”, dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, são os títulos com DNA nacional entre os 21 da competição do Festival de Cannes.


 Em dezembro do ano passado, quando este repórter visitou o set carioca do filme, o cineasta contou que se sentia intrigado pelo que havia levado o protagonista a delatar seus antigos companheiros. “Não se sabe se por conveniência ou vingança”, disse. “É uma traição psicanalítica, porque vai contra os princípios da máfia, de que ele era muito fiel.”


Algumas dessas motivações ele explora nas longas cenas de embate entre o personagem e o juiz Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi), com quem firmou o acordo para se tornar um informante da máfia. O magistrado, aliás, é a grande figura inspiradora do atual ministro Sergio Moro.


 A Falcone, Buscetta confidencia que sua motivação tem a ver com as mudanças nos códigos de conduta da Cosa Nostra. Eram os anos 1980, a Sicília tinha se tornado rota para o transporte da heroína e os mafiosos haviam se apoderado disso. Ao mesmo tempo, passaram a ser mais sanguinolentos, matando até crianças e mulheres.


O ex-gângster não concorda com esses novos métodos e, fiel ao que entende como sendo os princípios de seu ofício, opta por denunciar os outros criminosos em julgamentos mostrados em toda a sua espetacularização -comentário de tom político que serve tanto ao Judiciário italiano quanto ao brasileiro.


Não dava mesmo para esperar algo diferente de Bellocchio, veterano diretor de 79 anos que nas últimas décadas vem esmiuçando as entranhas do poder em seu país em filmes como “Bom Dia, Noite”, sobre a organização paramilitar Brigadas Vermelhas, e “Vincere”, sobre o fascismo.


O título do novo filme do cineasta, “O Traidor”, é outra artimanha. Pois o que o enredo defende é que quem traiu primeiro foram os novos barões da máfia, que contrariam os preceitos a que Buscetta era tão ligado.


Fora da programação oficial, o Brasil também marcou presença em Cannes com “Sem Seu Sangue”, de Alice Furtado, que faz parte da seção Quinzena dos Realizadores. O longa é um exemplar da boa produção autoral carioca, frequentemente ofuscada pela voracidade dos títulos comerciais da Globo Filmes.


 Aqui, a diretora estreante costura a história do despertar sexual de uma adolescente, apaixonada por um garoto hemofílico que chega na escola, com símbolos do vodu haitiano. Difícil explicar a ligação sem dar spoilers. A levada é mais reflexiva do que exatamente narrativa.


 Antes da sessão, a equipe do filme empunhou cartazes em defesa das universidades públicas, uma crítica à decisão do governo Bolsonaro de cortar investimentos em educação. Segundo Matheus Peçanha, produtor do longa, a obra só se concretizou porque os responsáveis por ela se conheceram na Universidade Federal Fluminense.


 “É um filme que só possível graças a esse encontro e ao ensino gratuito que tivemos”, diz. “A universidade pública cria um papel cultural e social.”