As peças são praticamente as mesmas, misturadas de outra forma. E assim segue Paul McCartney, de 76 anos, cheio de energia, reembaralhando as cartas que ele e os Beatles começaram a colocar no tabuleiro há mais de 50 anos, criando turnê atrás de turnê. ‘Freshen Up Tour’ é outra delas a voltar ao Brasil, a nona viagem de Paul a um dos países em que mais se apresenta no mundo A banda, vale lembrar, está a seu lado há 15 anos, mais tempo do que existência dos Beatles. Uma espécie de grupo que se comporta como se fosse uma família, com Paul ‘Wix’ Wickens (teclados), Brian Ray (baixo/guitarra), Rusty Anderson (guitarra) e, este um monstro, Abe Laboriel Jr (bateria).
O repertório que vem sendo apresentado mostra a predominância da fase Beatles, seguida por uma presença forte dos Wings, sua banda pós-Beatles, e materiais de fases solos. Do disco novo, duas ou três canções. O que tem feito, em geral, são ‘Fuh You’, a segunda depois da abertura de ‘Hey Jude’, e ‘Who Cares’ bem no meio da noite.
‘Hey Jude’ na abertura já seria uma revolução no conceito que ele vem mostrando nas últimas turnês. Começar um show com a catarse faz perguntar o que viria depois. Só Paul e mais dois ou três mortais poderiam fazer o mesmo. No mais, se nada mudar (algo que sempre acontece), será outro baile Beatles que o Allianz Parque vai receber nos dias 26 e 27 de março e no Couto Pereira, em Curitiba, no dia 30 de março.
A Curitiba, Paul volta pela primeira vez desde 1993, quando fez uma apresentação na Pedreira Paulo Leminski comemorando os 300 anos da cidade. Os números de Paul no Brasil impressionam. Ao todo, foram mais de 1,5 milhão de ingressos, incluindo seu histórico show no Maracanã, no Rio de Janeiro, em 1990. É desta época o recorde mundial para maior público em estádios de todos os tempos. Paul foi visto ali por 184 mil pessoas.
Serão ao todo 48 músicas em quase três horas de show. Em uma entrevista para Zeca Camargo, no Fantástico dos anos 1990, Paul contou que não bebia água no palco por uma questão de costume. “Não havia tempo. Ninguém bebia água no palco naqueles anos.” Ele brincou, gesticulando como se cantasse She Loves You e parasse para beber água. Assim, segue até hoje. Em um texto que envia à imprensa do País, diz o seguinte: “Eu não posso esperar para voltar ao Brasil. O público é sempre incrível, muito especial. Nós renovamos o show desde nossa última visita e estamos animados para apresentar algumas de nossas novas músicas do novo álbum, bem como as músicas que sempre amamos tocar…”.
Não é certo, como disse em entrevista ao jornal ‘O Estado de S Paulo’, que tocará ‘Back in Brazil’ no Brasil. “Precisamos aprendê-la” ele diz, e não brinca. Uma coisa é gravar uma canção, outra é prepará-la para o show. Não é das melhores músicas de Paul, nem dos destaques do disco novo, e sua pegada não parece empolgar grandes plateias. Mas a sensação deve ser como a dos russos ouvindo ‘Back in the USSR’ em Moscou.
Paul McCartney parece já ter colocado todo, ou quase todo, o repertório da banda debaixo dos dedos de seus músicos. Os shows sempre ganham alterações pontuais e surpresas. Curioso como agora, depois de abrir com ‘Hey Jude’, ele tem posicionado ‘The End’, a música que fechava a turnê anterior, ainda na primeira parte, por volta da 23ª colocação. A última já chegou a ser ‘Get Back’ em uma apresentação do final de 2018.
Seria o homem mais assediado do mundo um solitário, fazendo de seu palco a compensação com uma multidão à sua frente? Seria a banda que formou há 15 anos, seguindo-o por turnês consecutivas, a tentativa de vencer um fim nunca bem digerido por ele? As duas perguntas filosóficas feitas para jogá-lo no divã não tiveram o retorno esperado. Paul não parece ter crises existenciais. A resposta da primeira: “Não, eu não me sinto solitário, nunca. Eu estou muito bem casado, tenho uma linda esposa (Nancy Shevell), muitos amigos, tenho família, lindos netos, os fãs. Não sou um homem solitário”.
À segunda, sobre um possível apego eterno aos Beatles para compensar seu fim precoce, ele diz apenas que ama o palco e que não pensa jamais em decretar aposentadoria. A história e os fãs agradecem.

‘Eu gosto das grandes plateias’

A sequência de shows parece cansativa para um senhor que, embora teorias sustentem o contrário, se trata de um ser humano. “O que explica isso, Paul? Aos 76 anos, amigos seus já estão em casa brincando com os netos. Não seria por dinheiro, certo?” Segundo o jornal ‘The Sunday Times’, Paul segue sendo o artista mais rico do Reino Unido, com 780 milhões de euros, algo como R$ 3,2 bilhões. “Não, não é pelo dinheiro”, ele sorri. “Sabe, eu gosto das grandes plateias, estar com os fãs pelo mundo me dá energia, e ainda consigo passar um bom tempo com meus netos. É possível viver as duas coisas. Se eu fosse um pintor, gostaria de continuar pintando por toda a vida. Você está certo, eu não tenho que fazer isso o tempo todo, mas é só o que eu sei fazer desde garoto.”

O mundo parece dividido hoje entre esquerda e direita, como se nenhuma ideia pudesse se encaixar em outra definição. O rock n’ roll já foi acusado dos dois: direita, alienando os jovens, e esquerda, tornando-os rebeldes. Os Beatles eram de esquerda ou direita?
Paul — É uma pergunta difícil, mas acredito que os dois. Eu não acho que nos tempos de Beatles fazíamos distinção entre direita e esquerda, não era nosso interesse assumir uma ideologia. Estávamos mais preocupados em sermos sensíveis. Se lutar pelos direitos humanos é ser de esquerda, então digam que éramos de esquerda. Se fazer músicas que falavam de amor e de família era algo de direita, podem dizer que éramos de direita.
Seu disco mais recente, ‘Egypt Station’, traz uma história que se passa no Brasil na música ‘Back in Brazil’. Uma parte soa como crítica social quando diz que a garota sente medo e que “a esperança começa a desmoronar e seus sonhos, a desaparecer”. Você quis dizer algo?
Paul — Essa música narra uma história de amor, como se fosse um filme, e não pensei em outra coisa quando a fiz. Mas gosto quando a canção abre portas para outras interpretações. Pode levar isso para esse entendimento, acho ótimo.
Vai tocá-la no Brasil?
Paul — Estamos ensaiando, não sei se teremos tempo de aprendê-la até lá. Espero que sim.
Paul, qual seria a sua banda dos sonhos? Não vale colocar ninguém dos Beatles, Ok?
Paul — Ah, ok, deixe-me ver. Na bateria: John Bonham (baterista do Led Zeppelin, morto em 1982). Nos teclados… Billy Preston (músico que toca órgão em ‘Let It Be’, morto em 2006). No baixo (faz silêncio): John Entwistle (baixista do The Who, morto em 2002). Na guitarra, Jimi Hendrix (morto em 1970). E no vocal, Elvis Presley (segundo Paul, o imortal).
Paul, você tem uma música no disco novo, ‘Despite Repetead Warnings’, que fala de um capitão de um navio que, sem se preocupar com as advertências do aquecimento global, caminha para o fim com sua tripulação. O presidente do Brasil, neste momento, é um capitão com inspirações em Donald Trump, o homem a quem você dedicou sua música.
Paul — Eu não sei o suficiente sobre seu novo presidente para fazer comentários, mas, geralmente, olhando para o mundo, há um infortúnio no ar. Muitas pessoas estão assustadas, com medo, e uma grande preocupação nas Américas e na Europa tem relação com a questão dos imigrantes e dos refugiados. É muito fácil dizer: “Hey, eles vão roubar nossos empregos”. Mas, se você olhar para os Estados Unidos, verá que todos ali são imigrantes. Eu vejo nações sendo construídas com pensamentos de antissemitismo e políticas anti-imigratórias. Não posso falar do Brasil, mas vejo a ascensão de políticos que causam medo.
Roger Waters foi vaiado no palco ao falar sobre suas convicções políticas e uma questão apareceu ali. O que vale? Estar ao lado dos fãs que pagam para vê-lo ou ao lado do que você acredita ser a verdade?
Paul — Sempre ao lado do que você acredita. A situação política em muitos países está difícil, e aqui no Reino Unido não é diferente. Estamos passando por grandes mudanças na América, Itália, França. É tempo de falarmos a verdade.
O fim dos Beatles foi precoce ou eles acabaram no tempo em que tinham de acabar?
Paul — Os Beatles foram uma grande banda e poderiam muito bem estar tocando agora. Infelizmente, houve um fim. Aquela foi a melhor banda do mundo e eu tenho certeza de que, se estivessem todos vivos, estaríamos na estrada ate hoje.
Um dia, Paul. Se tivesse de escolher apenas um para viver de novo, qual seria ele?
Paul — Hoje. Eu sou um homem feliz.
E no final, o que é que fica? O avô que curte os netos nos feriados ou o artista que canta ‘Hey Jude’ para 80 mil pessoas?
Paul — Eles são o mesmo homem. No final o que fica é o amor.