Reprodução – Buraco negro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Alguns dias na história simplesmente não se repetem. A última quarta-feira (10) foi o dia em que a humanidade viu pela primeira vez a misteriosa sombra de um buraco negro –o mais enigmático de todos os habitantes do zoológico cósmico.

O alvo em questão foi um buraco negro gigante (os astrônomos preferem o termo “supermassivo”) que mora no coração da galáxia M87, uma monstrenga muito maior que a nossa Via Láctea localizada a 55 milhões de anos-luz da Terra.

Isso, claro, significa que a imagem apresentada mostra como estava o tal buraco negro há 55 milhões de anos, uma vez que foi esse o tempo que a luz levou para sair de lá e chegar até aqui. Mas que luz? O buraco não é negro?

Pois é. A luz que chega é a de gás sendo acelerado na borda do buraco negro, prestes a cair nele. Ao aumentar sua velocidade, ele se aquece e emite raios de luz capazes de atravessar o imenso vazio intergaláctico que nos separa. Daí o halo brilhante ao redor do dito cujo.

O sucesso é fruto da colaboração internacional Event Horizon Telescope (Telescópio do Horizonte dos Eventos), nome que se refere diretamente à fronteira matemática que delimita o ponto de não retorno de um buraco negro. Adentrando o horizonte dos eventos, qualquer coisa –até mesmo a luz– está destinada a jamais escapar. É como um ralo no próprio tecido do espaço, por onde a matéria e a energia podem fluir, mas jamais voltar.

“Temos a felicidade de dizer hoje que nós vimos o que não podia ser visto. Nós vimos um buraco negro”, declarou Sheperd Doeleman, diretor do projeto EHT, em coletiva realizada pela Fundação Nacional de Ciências (NSF), em Washington (EUA).

O resultado só foi possível graças a uma proeza técnica impressionante: os pesquisadores foram capazes de fazer oito conjuntos de radiotelescópios espalhados pelo mundo — um deles no Polo Sul — trabalharem simultaneamente, como se fossem um só, e depois combinar os dados numa única imagem.

A técnica é chamada de interferometria de base muito longa. Traduzindo do cientifiquês, isso equivale, grosso modo, a ter um telescópio cuja área é do tamanho da maior distância entre os diferentes elementos. E só mesmo com uma antena virtual do tamanho da Terra seria possível observar a mancha aparentemente despretensiosa apresentada pelos cientistas.

Ela foi o resultado de 5 petabytes de dados brutos colhidos em abril de 2017 e processados de forma cuidadosa ao longo de dois anos pelos vários grupos que compõem a colaboração –mais de 200 pesquisadores espalhados por 20 países.

O produto desse trabalho é, para além da imagem, sumarizado em seis artigos científicos publicados no The Astrophysical Journal Letters.

O sucesso reflete uma previsão intrigante feita mais de um século atrás por meio de equações matemáticas.

Usando a então novíssima teoria da relatividade geral de Einstein, o físico alemão Karl Schwarzschild calculou pela primeira vez o que aconteceria se fosse possível comprimir a massa de uma estrela além de um determinado limite.

Descobriu que, a partir de tal ponto, a gravidade ali seria tão intensa que nada poderia escapar dela — nem mesmo a coisa mais rápida que existe, a luz. Eis então a definição de um buraco negro.

Schwarzschild rabiscou seus artigos iniciais sobre esse fenômeno ainda em 1915, da frente de batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Enviou-os ao próprio Einstein, que gostou muito e os apresentou tempos depois à Academia Prussiana de Ciências. Mas o pai da relatividade achava que se tratava mais de uma curiosidade do que qualquer outra coisa –para ele, a natureza jamais permitiria a existência de tal abominação.

Isso porque, levando a ferro e fogo o que dizem as equações, um buraco negro significaria a existência de algo que se desconecta do nosso próprio espaço-tempo –como se criasse um furo no tecido que compõe nossa realidade.

Acontece que, um par de décadas depois, os físicos aprenderam como estrelas vivem e morrem e descobriram que, para astros de alta massa, quando a capacidade de gerar energia se esgota, eles podem se comprimir até gerarem de fato um buraco negro.

Ao longo dos anos, diversos cientistas pensaram em alternativas exóticas capazes de evitar a formação de um buraco negro, imaginando mecanismos que pudessem impedir o colapso completo da estrela e evitassem o surgimento de um horizonte dos eventos. Sempre foram alternativas pouco atraentes, mas não se podia descartar de todo até que observássemos de fato um buraco negro.

Então é isso que as imagens de quarta (10) significam: nossa primeira contemplação desse esotérico abismo no próprio tecido do espaço.

O EHT se concentrou em dois em particular. O mais óbvio é o superburaco negro que mora no coração da Via Láctea, chamado de Sagitário A* (fala-se “a-estrela”), com diâmetro estimado em 60 milhões de km e massa de 4 milhões de sóis.

Mas os pesquisadores também apontaram sua rede de radiotelescópios para o centro da galáxia elíptica supergigante M87, onde mora um buraco negro supermassivo que está muito mais distante, mas também tem mais de mil vezes mais massa –o equivalente a cerca de 6,5 bilhões de sóis. Foi essa segunda tentativa que resultou na imagem apresentada.

“Também temos resultados de Sagitário A*, mas são mais difíceis de processar, estamos trabalhando neles e esperamos poder apresentá-los em breve”, disse Doeleman.

Essas observações podem revelar detalhes jamais antes observados do disco de acreção (o material circundante do buraco negro, composto por gás que brilha ao ser acelerado pela gravidade), dos jatos relativísticos (de onde emanam partículas aceleradas quase à velocidade da luz) e, claro, do horizonte dos eventos (a mancha escura de onde a luz não pode mais fugir e chegar até nós).

Os resultados consistem em testes radicais da teoria da relatividade geral, que, por ora, continua em sua sequência aparentemente interminável de sucessos. Mas os cientistas seguirão desafiando Einstein.

O plano do EHT é aumentar o número de radiotelescópios (serão 11 em 2020) e melhorar observações e processamento, quem sabe revelando algum desencontro entre teoria e observação que nos permita ir além da compreensão da natureza estabelecida no século 20. Como disse Doeleman, essa primeira observação foi só o começo.