LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Principal acusado na maior ação de combate à corrupção em Portugal, a Operação Marquês, conhecida como Lava Jato lusa, o ex-primeiro-ministro José Sócrates (2005-2011) criticou a Justiça portuguesa e a brasileira por uso político de seus poderes.

Ele diz ver muitas semelhanças entre seu caso e o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem é amigo. “A diferença é que o PT se manteve unido ao lado do Lula. A primeira coisa que o Partido Socialista fez foi afastar-se. (…) Eu nunca pedi ao PS que me defendesse, mas nunca pensei que fosse o próprio Partido Socialista a atacar-me”, diz.

Acusado de 31 crimes pelo Ministério Público de seu país, que aponta sua participação em esquemas de corrupção, fraude fiscal e lavagem de dinheiro, José Sócrates, 61, vê os processos entrarem na reta final, após quatro anos de investigações.

A chamada fase de instrução do caso, em que os réus apresentam argumentos para tentar impedir o julgamento, acabou na semana passada. Em um provável cenário de as denúncias irem adiante, a próxima etapa será o sorteio do juiz responsável e a definição da data do julgamento.

O ex-primeiro ministro nega as acusações e diz que a operação é uma trama política que teve o objetivo de impedi-lo de concorrer à Presidência em 2015.

Detido no aeroporto de Lisboa quando regressava de uma temporada em Paris, em novembro de 2014, Sócrates, 61, ficou preso preventivamente por 11 meses mesmo sem ter uma acusação formal, que só chegou em outubro de 2017.

A Operação Marquês acusa Sócrates de ter recebido irregularmente EUR 34 milhões (cerca de R$ 164,4 milhões), essencialmente por favorecimento de empresários, como o ex-banqueiro Ricardo Salgado, também processado. Segundo o MP, o empresário Carlos Santos Silva, amigo do ex-ministro, teria recebido parte do dinheiro e gerenciaria, em contas na Suíça, a verba da corrupção.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, em Lisboa, José Sócrates rebateu as acusações, falou sobre sua relação com Lula e do cenário eleitoral brasileiro, que ele diz acompanhar com especial atenção.

 

O senhor acusa a Justiça e o Ministério Público de perseguição. Por quê?

– Existe aqui um julgamento inquisitorial. O que separa o sistema inquisitorial do sistema acusatório é justamente o fato de não ser, a pessoa que julga, a mesma que investigou. 

Durante todo este processo, eu tive sempre um inquérito que decorreu não com um juiz que fosse o juiz natural, mas com um juiz escolhido pelo Ministério Público. No dia 9 de setembro de 2014 o tribunal tinha dois juízes, e a lei impõe que a operação de distribuição seja por sorteio, que é a operação mais democrática de todas. Mas não foi isso que aconteceu.

É muito curioso, porque, salvo as devidas proporções, a mesma coisa aconteceu no Brasil. 

De que forma?

– O Estado escolheu um juiz de Curitiba quando está claro que a questão do triplex nada teve a ver com a Petrobras. Portanto, não deveria ser ele.

A legitimidade do juiz está assentada em quê? Por que alguém aceita ser julgado monocraticamente por um juiz? A legitimidade básica do juiz é que ele está acima das partes. Aqui o Ministério Público resolveu escolher um árbitro. Eu nunca tive um juiz imparcial. Não há julgamentos justos sem um juiz imparcial. Lá como cá. 

E qual seria a razão desta suposta perseguição do Ministério Público e da Justiça?

– Está claro que houve uma motivação política. A mesma coisa no Brasil, com a prisão do Lula. Isto me parece evidente. Mas aqui isso é um bocadinho mais hipócrita.

Tudo isso convinha à direita: tirar-me do espaço público, garantir que eu não me candidatasse à Presidência da República em 2015. Eu não fazia tensões disso, mas a direita achava que o PS me iria escolher para ser o candidato. Eles procuraram tirar-me do jogo [no início das investigações, Portugal era governado pela coligação entre os partidos de direita PSD e CDS-PP].

Seriam só setores da direita ou haveria interesse da própria esquerda e setores do Partido Socialista em ver o senhor preso?

– Acho que foi a direita política. Você tem de somar a motivação política da direita à vaidade dos personagens. Eles acharam que havia chegado o momento para construírem suas biografias políticas. 

O dr. Moro também achou que havia chegado o momento para sua glória. Para um lugar na política, ele o fez usando seu lugar na Justiça. O que é detestável, porque isso acaba sempre mal. Mal para a Justiça e mal para a política. 

E quanto ao conteúdo das acusações?

– No meu primeiro interrogatório ficou evidente as acusações não se sustentavam. Eles prenderam toda a gente na esperança que alguém pudesse delatar. Seguiram os meios brasileiros, a cultura é a mesma.

Mas isso não lhes serviu. Eles também tinham a expectativa de que eu fosse incriminado pelos papéis da Suíça, mas eu não fui. Porque eu nunca tive nada a ver com isso, nunca tive acesso a essa fortuna [os EUR 34 milhões que diz o MP]. Não sabia sequer que ela existia. 

Mas há um lado positivo nisto tudo. Nós nos libertamos de tal forma que é como naquela canção da Janis Joplin, em que ela diz ‘freedom’s just another word for nothin’ left to lose’. Quer dizer, a liberdade é uma outra forma de dizer que nós não temos nada a perder. 

Por que o senhor saiu do Partido Socialista?

– A diferença é que o PT manteve-se sempre ao lado do Lula. A primeira coisa que o Partido Socialista fez foi procurar afastar-se. A verdade é que o PS, ao longo de dois anos, foi cúmplice de todos os abusos. Eu nunca pedi ao PS que me defendesse, mas nunca pensei que fosse o Partido Socialista a atacar-me a um ponto que me levasse a ter de defender a minha dignidade tendo que me desligar do partido.

O senhor considera uma traição?

– Há uma dimensão política e uma dimensão pessoal. A traição tem uma dimensão pessoal. Não quero fazer este comentário. Um dia, fá-lo-ei. Mas, para já não vem a propósito. Vou escrever um livro sobre isto. 

Como foi a sua relação com o ex-presidente Lula?

No meu partido, o Mário Soares e outros dirigentes tinham uma relação mais próxima até com o Fernando Henrique Cardoso. Eu fui o primeiro a conviver com o Lula, que conheci quando já era primeiro-ministro. O Lula mostrou ao mundo que a esquerda latino-americana sabe governar. E este foi talvez o maior legado que ele deixou para o Brasil.

E os outros presidentes brasileiros?

– Eu percebi a posição absolutamente lamentável do FHC. Nunca perdoou o Lula ser melhor presidente do que ele. A história da Europa é marcada por um certo ódio das classes de baixo às classes mais altas. No Brasil é o contrário. O principal ódio é dos de cima para os de baixo. É o ódio ao pobre. 

O senhor acompanha de perto a política brasileira. Como vê as eleições de 2018?

– A direita vai votar no [Jair] Bolsonaro porque acredita nele. É isto em que realmente acreditam: na tortura, na violência, em tudo o que seja autoritarismo. Essas eleições serão um julgamento popular. Não sei quem ganha, mas esta é a oportunidade do povo se levantar para dizer que é soberano.