Releitura do desenho do Ave Lola de Gabriel Rischbieter

Desenhar foi meu trauma mais duradouro. O desenho acima é a forma de lidar com algo que eu travava completamente, mas antes de contar essa história, faço o convite para entendermos certos aspectos do trauma. O trauma nasce do rompimento de um limite, o acesso proibido na área restrita. Disso, pode ser derivado o medo, o núcleo de todas as emoções e alicerce do trauma, afinal é algo que nos causa dor, seja física ou emocional. Ao não curarmos ou tratarmos o trauma, passamos a criar o futuro a partir desse momento, da zona da dor. Isso porque imprimimos o ocorrido em forma de sentença, com a sensação de que sempre passaremos pela mesma experiência. Veja só o paradoxo, a experiência é para experimentar. Foi desagradável? Foi, mas agora ela pode ser diferente, porque já conhecemos o limite do trauma, não o nosso. 

A heroína de jornada do Comporte-se, Lola, caiu de uma escada e fraturou o nariz, no começo de sua juventude, quando estava na casa de um amigo. Passou por duas cirurgias incômodas e depois disso criou um bloqueio com escadas, que se tornou um trauma. Natural. São mecanismos de defesa, porém, a queda foi acidental, qualquer pessoa pode cair da escada, certo?

Passados alguns anos, Lola começou a sonhar com escadas, sempre caindo em looping. Acordava assustada e os gatilhos eram acionados: ansiedade, pânico e em alguns casos, ardência no nariz. Ela passou a se travar quando precisava subir ou descer degraus; recusou convites de passeio, teve náuseas ao ver filmes com escadarias imensas e isso é algo incomum? Não. É trauma, a reativação da dor pela experiência passada.

Descobriu-se em terapia, que Lola se deparava com o trauma de escadarias, ao lembrar do seu enfrentamento de vergonha, rolando pelas escadas com um vestido, bater o rosto e ser socorrida pelo amigo que ficou mais aflito que ela. “Eu fui caindo de forma bruta nos degraus de madeira, meu vestido levantou e meu rosto ficou ensanguentado, porque bati na quina no último degrau. Meu amigo ficou apavorado e não sabia se chamava socorro ou me juntava do chão, começou a chorar, então se estou sozinha, eu evito escadas, porque a sensação é de que ninguém vai me ajudar. Isso se repete quando tenho trabalho em equipe, que, de repente, vou me perder no projeto e meus colegas não vão saber me amparar”, descreveu Lola.

Como sair desse ciclo? É interessante analisar o trauma do ponto de vista, que fixamos a experiência no mesmo ponto de partida. Considerando que, agora é uma outra situação, por que então reativo o trauma?

Finalmente vou contar a história do desenho. Nunca fui naturalmente hábil em desenhar e isso não era um incômodo. Quando tinha 12 anos, a Irmã Erminda, professora de Educação Artística, simplesmente quebrou um quadro que eu fiz, na frente de meus colegas. Segundo ela, o material estava “errado e feio” e nunca iria receber um trabalho desse jeito. Jamais contestei que tinha um erro técnico, inclusive justifiquei antes de entregar, pois não sabia que a madeira ficaria distorcida ao sol. Contudo, ela se fez valer da autoridade de professora para humilhar uma criança. Como se não bastasse essa triste passagem, em outro momento pediu para desenhar um cavalo. Não ficou tão ruim, mas não era nada notório e disse que o meu desenho era o pior. Era uma lição de casa. Eu fiz o que estava dentro das minhas capacidades limitadas de desenhar, enquanto sabia que muitos colegas pediram para adultos desenharem para eles, algo que meus pais jamais fariam, e com razão!

A derradeira experiência com a mesma professora, foi no ano seguinte, quando resolveu colocar betume na minha escultura de gesso e ficou parecendo um cocô. Final de ano na exposição, aquela coisa horrenda com meu nome, me causando total trauma de qualquer manifestação artística ligada às plásticas.

O trauma foi tão intenso, que se alguém me pedisse informalmente que desenhasse um coraçãozinho, panelinha, qualquer faz-de-conta, eu começava a tremer internamente, as mãos suavam e a respiração ficava tensa. O trauma do julgamento, da crítica, o medo de errar.

Tive amigos artistas que me ajudaram e assim mesmo era sempre uma atividade justificada. Nunca tive a intenção de ser artista plástica ou algo similar. Temos habilidades em algumas coisas, e para outras não, ou simplesmente desinteresse em se aprofundar no assunto.

Fato é que sempre reafirmei a história com ênfase no trauma, essa ação desemboca no recalque freudiano: afastamento do consciente, mantendo determinada situação à distância. Ou seja, o trauma sempre está no mesmo ponto de acesso. Enfim, quando minha sobrinha era criança (hoje tem 22 anos), um dia pediu para que eu desenhasse a personagem de uma animação da TV, Madeline. Incrível que espontaneamente peguei papel e lápis e comecei a reproduzir. Mais espantoso, que o desenho ficou bacana e ela disse: “que desenho mais lindo!”. Nisso, percebi que meu ponto de criação não era mais a partir do trauma. Eu fiz uma escolha consciente.

Minha filha também na infância um dia pediu para desenhar um Mickey bonito. Ela tinha mais habilidade para desenhar, mas não conseguia. Assistimos um tutorial e desenhamos um Mickey bem bacana. Tinha mais técnica, mas usamos materiais comuns.

Vejam, nunca quis ser desenhista ou tinha isso como uma frustração, o que trago são eventos transformados em trauma, o processo de continuidade e solidificação daquilo que delegamos por associação.

Eu não sei criar um desenho, mas gosto de reproduzir, a tal releitura, ponho um pouco de mim na “obra”. No desenho que ilustra essa coluna, quis apenas passar o tempo e aproveitar o verso de folhas em branco. De algumas fiz blocos de rascunho e as demais me convidaram para desenhar. Limitada com canetas e lápis, desenhei a capa de um planner do Ave Lola ilustrado por Gabriel Rischbieter. A intenção era apenas uma distração, ocupar esse espaço antes da dor pela leveza, de desenhar sem a preocupação da crítica, um Dead Can Dance ao fundo, intercalado com Ella Fitzgerald.

Disso tudo podemos dizer: olhe para seu trauma como algo a ser resolvido, porque é possível que ele se desmembre em outras áreas; vá com calma e busque auxílio profissional de alguém que possa ajudar a você mesmo enxergar a situação por outra perspectiva; o trauma é o limite – não você!

 

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*Ronise Vilela é criativa de Comunicação Afetiva e Psicanalista Integrativa. Atende pacientes on-line e presencial com terapia que inclui escuta ativa, respiração consciente, escrita afetiva e meditação fácil.

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