Acordei com metade da minha capacidade respiratória. Via nasal, que fique claro. Que difícil que é não respirar. Estou respirando, eu sei. Completo os outros 50% com a boca. Mas é que o ar entra tão gelado e parece confuso lá dentro, como se tivesse perdido temporariamente o sinal do Waze. Lá vem ele, sem saber muito bem para onde ir, já era hora do próximo ar chegar bonitinho no pulmão, e o primeiro ainda perdido no meio do caminho “vou para direita ou para esquerda?”. Coisa horrível estar incapacitada.

Namorei um rapaz, quando eu era novinha ainda, que tinha rinite alérgica. Eu tinha uma agonia descomunal de estar perto dele de manhã. Como espirrava, fungava, assoava o nariz, como fazia barulho. Eu ali, ainda não tinha nem acordado a 100% e ele e seu lencinho a todo vapor. Hoje quando acordei – a 50% no máximo – e percebi o quanto era difícil viver com metade do nariz, lembrei dele e de quão cruel eu era, do alto da minha capacidade de respiratória completa, ao julgá-lo em seu desconforto.

Não é que eu esteja exatamente gripada – não tenho febre, não tusso – mas desde que acordei, sigo com meu aturgyl na mão. Tomei café agarrada nele, atendi mirando o frasco na mesinha lateral, escrevo agora com o remédio no colo. Entre pingar ou não a única gotinha que resolveria o meu problema, em questão de 30 segundos, lembro da voz de minha mãe “cuidado com o aturgyl, ele pode te levar a uma rinite medicamentosa”. Que injustiça. A simples existência dele me conforta e é – por muitas vezes – solução o suficiente para aplacar a agonia, isso sim. Para as crises de meu namorado de juventude, não havia conforto possível. De novo, que injustiça.

Essa não foi a única sacanagem que a vida lhe impôs no que se refere a dividir entre nós, matematicamente, o horror do destino. Ele era um moço vaidosíssimo e nutria um apreço grande pelo próprio cabelo. Um dia, resolveu que gostaria de radicalizar. Aliás, antes, uma particularidade: acredita que quando os fios estavam longos demais – e por longo demais leia, deveria ter cortado na sexta e só tinha vaga para segunda –, ele tinha enxaquecas lacerantes? “É o peso extra na cabeça, faz todo sentido”, argumentava. Entendeu? Pois resolveu radicalizar e me apresentou um produto antiquíssimo que promete cabelos lisos, sedosos e cheios de movimento a cada aplicação. A rigor, o objetivo é alisar e pintar. Compramos o preto azulado. Assim no plural mesmo, como tínhamos ambos os cabelos curtos, a proposta era que usássemos a mesma bisnaga para ficarmos “lindos juntos”. No fundo, no fundo, ele queria dividir o prejuízo na farmácia.

Ainda nos cinco primeiros minutos da aplicação, nós dois de touca na cabeça, percebemos um vermilhinho que começava a aparecer no pescoço dele. Teste de pele? Imagina, éramos jovens e destemidos. O vermelhinho virou uma coceira, que virou uma queimação, que virou desespero, cabeça na pia, água corrente e muitos chumaços de cabelo escorrendo pelo ralo. Minha mãe, que cochilava no quarto do lado, correu ao som dos gritos de horror do menino e sapecou todo mundo no carro a caminho do hospital.

Alergia de contato, cabeça raspada à máquina zero e auxílio medicamentoso. Nos dias que se seguiram ao ocorrido, ele pegava no meu cabelo preto azulado, esticadíssimo, e dizia ainda choroso, “que injustiça”. Para mim, sua fase careca foi, disparada, de todas a mais bonita. Embora ele também ficasse muito bem com o cabelo cacheado, castanho, preto, curto, longo – não, longo não, as enxaquecas não lhe favoreciam. Até ligaria para pedir desculpas pela falta de paciência nas manhãs de barulho, mas dificilmente teria a minha voz reconhecida com esse nariz entupido. Bem feito, justíssimo! Boa semana queridos.

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