Reprimimos coisas que sentimos que deveríamos dizer, fazer ou ver, mas que sentimos que não seriam adequadas numa determinada sociedade: a censura ou a vergonha nos impedem.

Freud falava do inconsciente nos aspectos da vida social que são reprimidos pela comunidade em seus usos e costumes, como algo a que negássemos a luz do dia, porém no entanto continuam a existir como expressão noturna; estes fatos ou atitudes não encontram formas legítimas de formulação, mas não desaparecem pura e simplesmente, continuam a fazer parte da de nossa existência, como um dente dolorido que outros não podem enxergar, entretanto continua doendo.

Existe portanto um aspecto diurno da vida sociocultural, ali encontramos as pessoas, temos nossos comportamentos com significados de legitimação, e um outro aspecto noturno, que corresponde a tudo que reprimimos e não tem forma óbvia de expressão, embora continuem presentes e façam parte da vida social e cultural.

Esta parece ser a contradição entre aqueles que fazem o discurso do cidadão de bem, cheios de valores cristãos, que querem a família acima de tudo, até dos valores comunitários mais caros à preservação da vida e extinção da pobreza generalizada, contudo querem portar armas e eliminar todos aqueles que consideram seus inimigos. Para essas pessoas, aparentemente não existem opositores, apenas seres do mal que precisam ser varridos da face da terra.

São fervorosamente contra o aborto – bastaria que não o fizessem – mas apoiam a pena de morte, e mais que isso, consideram as crianças abandonadas que vivem nas ruas “um perigo para toda a sociedade” e algo a ser empurrado para fora de suas vistas e da possibilidade de incomodar seus familiares. Os sem-teto pelas ruas são ainda mais execrados: drogados, sujos, representam a incapacidade de vencer na vida, a indolência daqueles que não trabalham e não podem colaborar para com a vida social de suas igrejas e templos, não frequentam os cultos e não ouvem os bons conselhos de seus dirigentes espirituais,

Assim, é o “cidadão de bem”, figura cada vez mais presente no debate público brasileiro, pontuando moralmente o conceito de cidadania, que deveria representar o sujeito honesto, que zela pela defesa de sua família e dos valores e costumes tradicionais, mas está cada vez mais imbricado no jogo social e político, revelando-se as vezes como demagogo, moralista e reacionário.

Esta estratégia discursiva ideológica expressa uma patologia social brasileira, parte de um sistema de convencimento que pode ter consequências funestas. A noção moderna de cidadania expressa no conceito de “cidadão” que parece exigir uma complementação retórica – “de bem” – parte do princípio de que a hierarquia moral se sobrepõe à universalização dos direitos de cidadania, em que a dominação política se impõe e regula as relações sociais do ponto de vista ideológico.

A vida ética não comporta esta dicotomia: alguns são irmãos, outros devem ser trucidados. No entanto, dizem abertamente que índios devem ser dizimados, nenhum centímetro de terra deve ser cedido a eles, são atrasados, bêbados e falam uma língua incompreensível, não tem sequer a mesma religião que nós; da mesma forma aqueles que tem fé em crenças de matriz africana, são adeptos de Satanás e até mesmo traficantes tem direito de destruir seus altares e locais sagrados.

Homossexuais são os piores, antíteses de famílias – embora muitos adotem as crianças que ninguém quis após as negativas às suas mães de trazê-las ao mundo -, e muitas vezes excelentes tutores, condenados por todos e apontados pelas ruas quando não agredidos ou mortos, sempre por aqueles que querem calar em dentro de si os mesmos sintomas inconfessáveis.

Sem perceber estas contradições, possivelmente pela falta de educação e cultura que se generaliza entre os cidadãos de bem aos quais basta o discurso do bem contra o mal, sem nenhuma sabedoria para distinguir um do outro…. que falta faz um bom sistema educacional capaz de suprir esta falha!

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.