SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No mesmo 1872 em que foi criada no Brasil a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e num período de pleno desenvolvimento econômico no país, Chile e Argentina davam os primeiros passos para a implantação de uma ferrovia que ligaria os dois países, cruzando a cordilheira dos Andes.

A revolucionária ideia para os padrões sul-americanos saiu do papel, mas apenas 38 anos depois. E durou somente 74 anos, com um intervalo de uma década devido à queda de uma barragem que inviabilizou o tráfego de trens.

Essa história começou a ser levada a sério quando o Congresso da Argentina aprovou a construção da chamada Ferrocarril Transandino, que tinha como objetivo ligar o país ao vizinho Chile, encurtando as distâncias e favorecendo o transporte de passageiros e de cargas entre os dois países.

Mas, desde o início, a ligação entre Mendoza (Argentina) e Santa Rosa de Los Andes (Chile) enfrentou obstáculos burocráticos, financeiros e climáticos.

Ela surgiu num período em que as ferrovias representavam o ápice tecnológico e abriam para o mundo as portas do progresso. No Brasil, o período atraiu investimentos externos, tirou o país da estagnação econômica e impulsionou seu desenvolvimento na segunda metade do século 19, como defende o brasilianista William Summerhill.

No Chile, a concessão para a construção foi dada somente dois anos após a aprovação argentina. As obras, porém, só começaram na década seguinte nos dois países: em 1887 na Argentina e, em 1889, no Chile.

Entre os motivos para o atraso esteve a dificuldade financeira para colocar o projeto em prática. Muitos túneis e obras nos trilhos foram necessários, já que era preciso romper as dificuldades impostas pela cordilheira.

A altitude de Mendoza em relação ao nível do mar é de 767 m, enquanto o ponto final dos 248 quilômetros de ferrovia, em Santa Rosa de Los Andes, é de 814 m. Só que nesse intervalo há locais de até 3.200 m de altitude, como no túnel Cumbre, na fronteira entre os países –entre Las Cuevas e Los Caracoles.

A construção da Transandina, inaugurada em 1910, foi considerada um épico, devido às dificuldades impostas pela cordilheira e aos já citados problemas para financiamento da obra. O ano de inauguração, aliás, foi emblemático para os dois países, pois 1910 marcou o primeiro centenário do início do processo de independência de Chile e Argentina –que só se concretizaram anos depois.

O cenário era deslumbrante. Após a partida sentido Chile-Argentina, a ferrovia subia um trecho perto do rio Aconcágua, cruzava o túnel que só terminava na Argentina e margeava outros rios até chegar a Mendoza.

PROBLEMAS

Logo após o início da operação começaram a surgir obstáculos, especialmente pelo fato de o serviço ser explorado por duas empresas, uma de cada país. Embora o idioma fosse o mesmo, elas não necessariamente falavam a mesma “língua comercial”.

Na década seguinte, conforme documentos da Biblioteca Nacional do Chile, começou a administração unificada da ferrovia, que durou até 1932.

Os anos iniciais foram considerados promissores. Ainda de acordo com dados da Biblioteca Nacional, a ferrovia teve média anual de 100 mil passageiros e 25 mil toneladas de carga transportadas.

Muito? A média de 273 por dia para o trecho é baixa, se comparada à Mogiana no mesmo período. Em 1913, a empresa ferroviária que operou em territórios paulista e mineiro transportou 2,9 milhões de passageiros, segundo documentos da época.

Embora a comparação seja entre um trecho ferroviário (Transandina) e toda a malha de uma companhia (Mogiana), os números dão uma noção de que a rota internacional não tinha grande sustentabilidade econômica. Principalmente se for considerado que a Mogiana vivia um crônico deficit financeiro que resultou em seu desaparecimento para ser uma das formadoras da Fepasa (Ferrovias Paulistas S.A.), em 1971.

E 100 mil passageiros por ano são transportados atualmente na ferrovia turística entre Campinas e Jaguariúna, que opera apenas aos sábados e domingos, segundo a ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária).

CONFLITOS E DECADÊNCIA

Se a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, fez com que os cafeicultores brasileiros fossem à bancarrota –levando companhias ferroviárias junto–, a chamada Grande Depressão fez minguar o total de passageiros e mercadorias na Transandina.

O pior período de recessão econômica do século passado durou toda a década de 1930 e, se já não fosse suficiente para prejudicar a ferrovia internacional, uma queda de barragem do lado argentino em 1934 fez com que a Transandina tivesse o tráfego de trens interrompido por dez anos.

Ela até voltou, com locomotivas elétricas, mas os mesmos problemas que a ameaçaram desde o início –alto custo de manutenção, tremores de terra especialmente o Chile e deslizamentos de neve– também voltaram.

A exemplo do que ocorreu no Brasil com as ferrovias, o fluxo de passageiros passou a ser cada vez menor e nem mesmo a implantação das locomotivas a diesel, em 1964 –mais rápidas–, impediu que o serviço fosse fechado em 1979.

Para cargas, porém, ainda conseguiu operar por mais cinco anos, até encerrar definitivamente as atividades. O motivo? Uma avalanche do lado chileno destruiu parte da ferrovia.

Os últimos anos da ferrovia ocorreram num momento em que as relações diplomáticas entre os dois países estavam estremecidas. Quase foram a um conflito armado no fim dos anos 70 devido ao Canal de Beagle, região que divide os países no extremo-sul, após a Argentina rechaçar a área definida para ela por meio de uma arbitragem internacional. Foi preciso que o papa João Paulo 2º (1920-2005) mediasse a disputa.

Depois, em 1982, durante a Guerra das Malvinas, entre Argentina e Inglaterra, o Chile permitiu que os europeus instalassem uma estação de radares no sul do país para vigiar a movimentação argentina. O fato gerou novo conflito diplomático entre os vizinhos, ambos sob regime ditatorial à época.

Hoje, na região de Mendoza, restam somente os trilhos, que se tornaram atrativo turístico. O Chile explora parte dos trilhos, mas nada que se compare à aventura que foi romper os Andes com uma ferrovia no início do século passado.