MAURÍCIO MEIRELES

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se você não ficou os últimos milênios em Marte, deve conhecer a história: depois de se mover sobre a face das águas, criar a luz, as grandes baleias, as feras, entre outras coisas -e achar tudo isso ótimo-, Deus criou o homem e a mulher.

Colocou os dois num jardim com bufê e bar liberados e só deixou uma proibição: nem pensar em comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Mas Eva se deixou seduzir pelo diabo, desobedeceu e ainda fez Adão cometer o mesmo pecado.

É a história desse mito que o historiador da literatura Stephen Greenblatt, professor da Universidade Harvard conhecido por trabalhos sobre Shakespeare, trata no novo “Ascensão e Queda de Adão e Eva” (Companhia das Letras).

Greenblatt mostra de novo seu fascínio pelos textos antigos. O novo livro se assemelha, em certo ponto, à sua obra anterior, “A Virada”, na qual contava a importância da redescoberta, no século 15, de “Da Natureza das Coisas”, poema do romano Lucrécio (99 a.C-55 a.C).

Do mesmo modo, Greenblatt aqui repassa a origem e a recepção da narrativa de como Adão e Eva cometeram o pecado original, passando por autores como Santo Agostinho, o poeta John Milton (“Paraíso Perdido), os iluministas e Darwin, entre outros.

“Essa é a história mais importante criada pela imaginação. Se queremos analisar o poder da literatura, é o lugar ideal para começar”, diz Greenblatt à reportagem. “Vivemos em uma cultura que sempre remete a esse mito. Subestimamos a narrativa, mas ela é importante.”

Um dos elementos que a sociedade moderna toma por intrínsecos ao mito de Adão e Eva é a misoginia da história. Sim, essa é uma característica da narrativa, diz Greenblatt, mas não a única. E houve tentativas de lê-la de uma forma diferente.

“A misoginia está sim lá, e não é uma ilusão pensar que a história dos dois é responsável por justificar boa parte do sofrimento feminino. Mas outras culturas têm mitos semelhantes”, afirma o autor.

Ele destaca um fato curioso: num dos primeiros registros que fala do casal, descoberto na cidade egípcia de Nag Hammadi em 1946, Eva é tratada como heroína porque escolheu o conhecimento em vez da ignorância.

A perpetuação da história tal como a conhecemos mostra, segundo Greenblatt, que quem a escreveu sabia que a ascendência do homem sobre a mulher não era natural -e precisava ser justificada.

Apontar o machismo não é novidade. No século 17, a freira italiana Arcangela Tarabotti já havia denunciado que o mito estava sendo usado para condenar as mulheres.

Outros cristãos acharam que a culpa maior era do homem -afinal, Eva tinha sido enganada pelo diabo, ao passo que Adão pecou por vontade própria.

Outra questão importante na história de como Adão e Eva foram lidos é o eterno dilema: a narrativa deve ser interpretada literalmente? Greenblatt afirma que o principal defensor de que sim, tudo aquilo aconteceu exatamente daquele jeito, foi Santo Agostinho.

“Pesquisas aqui nos EUA mostram que muitas pessoas continuam a acreditar que a história é literal. Todo país com movimento evangélico passa por isso”,diz o autor.

“A explicação que gosto é a da força dessa narrativa. É difícil desistir dela, mesmo com todas as evidências científicas, porque trata da responsabilidade humana, o bem e o mal -questões que a ciência tem dificuldade de tratar.”

Quem acredita que a Bíblia conta tudo factualmente, e não como alegoria, pode ter problemas para explicar alguns pontos: por exemplo, o Gênesis diz que o casal abriu os olhos depois de comer o fruto. Isso quer dizer que estavam de olhos fechados antes, não enxergavam?

E há ainda o paradoxo central, destaca Greenblatt: como os dois podiam ser impedidos de saber a diferença entre o bem e o mal, conhecimento que só seria adquirido com o fruto da árvore?

A verdade literal começa a ser desafiada com a geologia e a descoberta dos primeiros fósseis -mostrando que a Terra era bem mais antiga do que dizia a Bíblia. Quem dormiria com essa? O jeito de conciliar a fé com descobertas foi dizer que Deus tinha feito uma espécie de pegadinha e criado tudo com um passado.

Greenblatt dedica três capítulos a “Paraíso Perdido”, clássico do poeta inglês John Milton (1608-74).

“É a maior tentativa literária de tentar lidar com essa história. Milton descobriu como tornar Adão e Eva reais e os identifica mais e mais como seres humanos contra a proibição de Deus”, diz Greenblatt.

Para quem sentia falta de ler os estudos do autor sobre Shakespeare, ele acaba de lançar no exterior o livro chamado “Tyrant”, que ele espera lançar no Brasil também.

“Quis analisar como Shakespeare via o fato de uma sociedade poder cair nas mãos de um livro desastroso. Por que as pessoas colaboram com as ascensão de um líder que será ruim para elas? Shakespeare pensou essa questão a vida toda.”

É um livro sobre o presidente dos EUA, Donald Trump?

“Vou deixar você e os leitores decidirem se é”, ri o autor.